SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) - A decisão do governo de alterar a regra de correção do teto de gastos, de forma retroativa, é vista por analistas como o fim da norma constitucional criada no governo Michel Temer (MDB) e a abertura de uma "porteira" para Executivo e Legislativo aumentarem diversas despesas com objetivo eleitoral.

Cálculos feitos por analistas apontam para um espaço de pelo menos R$ 80 bilhões e que pode chegar a R$ 96 bilhões, valor que comporta não só um novo programa social, mas dá liberdade para outros gastos.

Para eles, seria possível criar um programa maior que o Bolsa Família cortando outras despesas, como emendas parlamentares, aprovando reformas e revendo subsídios e outros programas sociais.

Carlos Kawall, diretor da ASA Investments e ex-secretário de Tesouro Nacional, afirma que a decisão de furar o teto de gastos representa uma ruptura do regime fiscal, a abertura da caixa de pandora, um aumento de gastos que não deve parar por aí. Ele prevê uma piora nas condições financeiras, com mais inflação, crescimento próximo de zero e mais desemprego.

Kawall afirma que não há oposição ao programa social em si. Para ele, se houvesse realmente compromisso do governo com a sustentabilidade fiscal, o Auxílio Brasil poderia ser viabilizado de outra maneira.

"O que a gente está vendo é um populismo fiscal que vai ter um custo. Não são só 17 milhões de pessoas no Brasil [aqueles incluídos no programa] que são pobres. Essas pessoas vão ter mais dificuldade de conseguir emprego", afirma.

"O problema não é o mercado. O mercado se vira. O problema é o impacto no setor real da economia, que vai ser muito negativo."

Kawall revisou sua projeção de crescimento do próximo ano de 1,5% para 0,4%, podendo ficar mais próxima de zero. Afirmou que o intervalo para a taxa básica de juros subiu para algo de 10% a 11% em 2022, o que deve levar a uma aceleração do ritmo de alta na reunião do Banco Central da próxima semana. Também projeta mais 0,5 ponto percentual de inflação neste ano e 0,4 ponto no próximo, devido a um câmbio mais depreciado.

"É um momento de ruptura do regime fiscal. Não é se o valor é R$ 30 bilhões ou R$ 80 bilhões. É o precedente. Abrir a porteira."

Juliana Damasceno, pesquisadora da área de Economia Aplicada do FGV Ibre (Instituto Brasileiro de Economia da Fundação Getulio Vargas), afirma sempre ter visto a regra de indexação do teto como um problema, pois o percentual não é o mesmo que corrige as despesas.

Afirma, no entanto, que a mudança feita em cima da hora e de forma retroativa mostra que o objetivo do governo é apenas eleitoral. Também revela a falta de intenção de revisitar outras despesas, algumas questionáveis, com emendas parlamentares, fundo eleitoral e subsídios.

"Essa medida adotada agora, principalmente com essa data de validade até o final de 2022, revela a que ela veio, com uma vertente completamente eleitoral. Há outras formas de conseguir emplacar esse programa", afirma.

"Se a gente sistematiza essa questão de ficar mexendo no teto sempre que ele ameaçar ser rompido, aí a gente não tem mais teto, ele já não vale mais como a âncora que deveria ser."

Damasceno também diz que o espaço aberto no teto é superior ao valor do gasto que deve ser gerado pela ampliação do programa social, o que mostra que haverá margem para gastar ainda mais.

O especialista em contas públicas Guilherme Tinoco, um dos autores de uma proposta apresentada em 2019 para alterar o teto de gastos, calcula que a mudança de indicador abriria um espaço no teto de R$ 46 bilhões.

Ele afirma que a proposta de 2019 de permitir um aumento maior do teto e ampliar investimentos tinha como compensação a aprovação da reforma da Previdência na época. Além disso, era uma mudança que só valeria a partir de 2023.

Tinoco diz que é difícil fazer um programa social grande, mas que o teto está aí para que o governo não gaste indefinidamente e não perca o controle das contas públicas.

Para ele, o governo poderia ter planejado uma mudança no teto, mas com muita antecedência e algumas compensações, como privatizações e reformas.

"Tem espaço, pelo menos o das emendas, que é razoável, mas ninguém quer abrir mão de emenda de relator. Seria uma boa fonte de financiamento", afirma Tinoco.

"O que não dá é para fazer do jeito que está. Isso é furo. Então é melhor falar que está furando mesmo o teto do que ficar mudando indexador para deixar tudo certinho dentro das regras. Aí é fazer os outros de bobo."