SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) - Quando Leda Catunda era uma estudante universitária no começo dos anos 1980, a artista brasileira viu numa revista de arte a obra "Dinner Party", de Judy Chicago. Era a primeira vez que ela se deparava com aquela instalação de um imenso banquete em homenagem a mulheres emblemáticas --e que se tornou o trabalho mais celebrado da artista americana.

"Não tinha como entender aquilo, os pratos lembravam genitálias femininas, formavam uma grande instalação. Era algo que vinha seguido de um momento conceitual, mas a proposta era tão feminista", lembra Catunda.

Naquela época, havia uma crítica de que a peça era "feminista demais". Mas, décadas depois, Catunda acredita que as bandeiras feministas que Chicago levantou finalmente foram reconhecidas pelo público.

As toalhas e a iluminação dramáticas da mesa de jantar, com aquelas mulheres históricas que seriam devoradas e homenageadas no mesmo banquete, foram compreendidas. "Ela já está berrando isso há anos e agora todo mundo quer ouvir."

Pela primeira vez obras da americana consagrada como pioneira da arte feminista chegam ao Brasil. Obras da série "Birth Project" e outras dos anos 2000 são expostas na galeria Fortes D'Aloia & Gabriel, em São Paulo, em conjunto com um corpo de trabalho inédito que Catunda criou a partir de 2019 para travar discussões sobre feminismos com Judy Chicago.

A artista americana, hoje com 82 anos, conta que quando começou a série de trabalhos sobre partos entre os anos 1980 e 1990 quase não existiam imagens que retratassem o nascimento. Quadros como "Meu Nascimento", de Frida Kahlo, que mostram explicitamente uma vagina sangrando no parto ainda não eram conhecidos nos Estados Unidos, lembra a artista.

"Fiquei muito chocada com o fato de que não havia essas imagens e tirei sarro de que se os homens tivessem bebês haveria milhares de figuras de coroamento do bebê por aí", diz ela sobre a etapa do parto natural em que é possível ver a cabeça do neném no canal vaginal.

Nos trabalhos têxteis costurados com outras mulheres, Chicago representa esse momento de força com texturas densas que explodem da mulher em cores quentes.

"Vi vídeos e muitas fotos de parto, mas ao vivo é muito diferente de observar a vulva. Você percebe o quão poderosa ela é. Não é possível continuar pensando que esses corpos são passivos se você vir uma vagina durante um nascimento", diz Chicago. "O pênis é um órgão poderoso só quando tem uma ereção, e isso não dura tanto quanto um parto, disso eu tenho certeza", ironiza ela.

Parir, na visão dela, é um ato sublime, catártico e de êxtase, mas também de intensa dor. A diversidade de sentimentos até conflitantes com que Chicago teve contato recolhendo centenas de relatos estão nas obras apresentadas no Brasil.

A condição da mulher na sociedade é também retratada em cenas cruéis de casamentos infantis com homens com o pênis ereto próximo a crianças ou de mulheres isoladas enquanto estão menstruadas.

Uma das costureiras que participou de "Birth Project", por exemplo, contou à artista americana que sua mãe teve cinco filhos. Parte de uma família católica, a matriarca sentou na mesa de jantar e chorou copiosamente quando soube que esperava um sexto filho.

"Senti que um tecido usado em roupas infantis poderia transmitir aquela sensação de compressão, a vida dela estava sendo espremida porque ela não podia fazer um aborto", conta Chicago, sobre uma obra em que uma mulher grávida chora com as mãos no rosto. Foram nesses processos que ela encontrou essas diferentes técnicas de costura que marcam seus trabalhos.

Foram nesses métodos, aliás, que a artista enxergou proximidade com Leda Catunda, quando viu o trabalho da brasileira pela primeira vez. "Há quem escreva que meu trabalho é feminino porque eu uso muitas técnicas de costura, mas há outras questões como a apropriação de imagens, como nas obras em que recorto camisetas de desenhos japoneses", afirma Catunda.

Nas obras feitas para a exposição, no entanto, o acento de temas do feminino é reforçado. Além da paleta vermelha onipresente, os títulos são todos no feminino --"Recheada", "Camuflada". "Eles sugerem uma ação, quer dizer que uma mulher se recheia, por exemplo, um poder que a Judy Chicago exalta muito bem."

O coroamento também é retomado por Catunda, ainda que de forma mais abstrata. Camadas de tecido formam esse buraco, uma conexão do dentro com o fora, numa grande barriga vermelha avolumada. Ao lado dos trabalhos de Chicago, essas formas moles começam a parecer seios, carne e sangue.

"A sociedade não valoriza a gravidez, mulheres são demitidas porque engravidam. Estamos todos aqui porque temos uma mãe", diz Catunda. "Por isso fiz a escolha dessas cores quentes e dos títulos femininos. É uma cor agressiva no modo de comunicar isso."

As duas artistas acham que esse é um momento crucial para se debater a figura da mulher no Brasil. "A gente precisa estar atento ao mundo, tem que haver uma valorização do feminino. E, na verdade, autores que venho lendo, como Judith Butler e Paul Preciado, mostram uma porta para a liberdade das pessoas", afirma Leda Catunda.

Ela se lembra da obra "Dinner Party" também com uma metáfora à pejorativa expressão de "comer" uma mulher. "É algo totalmente masculino, e uma ideia que está até na fala recente deste deputado", diz ela em relação aos áudios em que Arthur do Val, conhecido como Mamãe Falei, se referia a mulheres na Ucrânia como "fáceis" pela sua condição durante a guerra.

"Ainda que eu saiba que há uma história de feminismo na América do Sul, sei que gênero ainda é um assunto difícil no Brasil. E isso tem a ver com um governo autocrático e patriarcal, isso acontece com homens que sentem que estão acima da lei e que podem fazer o que quiserem", afirma Judy Chicago.

Ela acredita que agora o seu trabalho finalmente está sendo reconhecido e viajando pelo mundo, o que ela sempre quis. Catunda, com 60 anos, também afirma que admira que o entendimento sobre a poética que Chicago criou no século passado mudou e é tão valorizada.

Ao mesmo tempo, nesse último Dia da Mulher, a americana lembrou que se trata de um momento "muito difícil de se preocupar com as mulheres privilegiadas do Ocidente dado o que está acontecendo no mundo", com a guerra na Ucrânia.

"Estive lendo ultimamente sobre as mulheres de conforto. Na Segunda Guerra Mundial, mulheres eram transformadas em escravas sexuais no Japão, com a ideia de que elas davam conforto aos soldados. E é um país desenvolvido", conta Chicago. "Temos um longo caminho a percorrer ainda. A questão é se vamos chegar lá ou se esses loucos vão explodir o mundo."

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JUDY CHICAGO E LEDA CATUNDA

Quando De ter. a sex., das 10h às 19h. Sáb., das 10h às 18h. De 12 de março a 23 de abril

Onde Galeria Fortes D'Aloia & Gabriel - r .James Holland, 71, São Paulo

Preço Grátis