SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) - A história no Brasil parece dar voltas em espiral. Os yanomamis que padeciam de doenças trazidas por garimpeiros mais de 50 anos atrás, por exemplo, voltaram a sofrer um aumento da malária e da desnutrição infantil crônica no ano passado. A própria atividade de garimpeiros é incentivada por promessas do presidente Jair Bolsonaro de legalizar sua ocupação.

Mas, nas pinturas do artista paulistano Luiz Zerbini , a mesma história pode não ser exatamente a mesma, como sua nova exposição no Masp explora. A primeira missa do Brasil agora tem ao centro uma indígena --e os tons acinzentados são reservados aos portugueses, quase numa inversão dos canibais estereotipados de Théodore de Bry.

A guerra de Canudos também sai do registro preto e branco da foto clássica de Flávio de Carvalho, com aqueles sujeitos já rendidos e na miséria. São figuras com tons, vestimentas e histórias próprias, enredados numa magia botânica da caatinga brasileira, com mulungus e umbuzeiros floridos. Outras cores, protagonistas e histórias.

Organizada por Adriana Pedrosa e Guilherme Giufrida, "A Mesma História Nunca É a Mesma" é a primeira exposição do artista num museu de São Paulo, sua cidade natal.

"Sinto que tenho responsabilidade por ser daqui. São Paulo se coloca como protagonista, nessa ideia de locomotiva, mas é uma desgovernada, levando a gente para um buraco", afirma o artista.

"Mas aqui está o poder econômico, e é também o lugar onde tem que se começar a inversão desses valores. Não tenho como fugir da minha origem, ainda que dê vontade."

Os cerca de 50 trabalhos apresentados no museu são inéditos em sua maioria e começaram a partir da pintura "A Primeira Missa", feita por ele em 2014 para uma mostra no Instituto Tomie Ohtake.

"É um ano emblemático, na sequência das manifestações de 2013 , em que começa essa efervescência que dura até hoje, um pouco a reinvenção dos discursos sobre o Brasil, na direita e na esquerda", diz um dos organizadores da mostra, Guilherme Giufrida.

No bicentenário da independência do Brasil, em que parecem estar ainda mais em disputa ideias que se tem do país e do ser brasileiro, Zerbini apresenta essas reconstruções de grandes embates da história nacional, como o massacre de Haximu e a própria guerra de Canudos.

As obras foram montadas numa grande estrutura de madeira desenhada por Lina Bo Bardi para uma mostra sobre Candido Portinari nos anos 1970. O suporte, no entanto, foi elevado a uma altura maior, que tenta dialogar com o porte das grandes copas de árvores numa floresta. As estacas cruas também foram alteradas por uma série de desenhos do Zerbini.

Essa ornamentação na estrutura repete o excesso de cores que inverte o sentido da arte "oficialesca" nas pinturas. Ao mesmo tempo, é um passo mais distante do modernismo, avesso aos ornamentos.

Desde"< 2014, quando fez a nova primeira missa protagonizada por uma indígena, Zerbini aponta que foi uma sequência desastrosa de eventos que levou à eleição de Bolsonaro, que disputará novo mandato. "Mas a situação dos indígenas passa por todos os governos, vai além da política. Eles sofrem desde sempre", diz ele.

"Agora, com Bolsonaro, realmente se escancarou e se declarou [esse ataque]. Mas a gente não teve capacidade de, quando ele disse que faria isso, entender que não era para deixar acontecer."

O próprio retrato do massacre de Haximu, que vitimou indígenas yanomamis nos anos 1990, mudou de perspectiva durante o processo em função da investida recorrente do presidente contra povos originários. O artista conta que ele estava pintando um genocídio como evento histórico quando reapareceram as centenas de balsas de garimpo no rio Tapajós.

"Zerbini está figurando a catástrofe, as figuras que a gente tem que combater enquanto grupo", diz Giufrida. "Este é um período muito vivo também com a entrada de novos sujeitos, subjetividades e perspectivas nos últimos anos."

E não são só as pessoas que aparecem como sujeitos dessa usurpação colonizadora --as plantas também aparecem como personagens dessas histórias coloniais.

O café, a cana-de-açúcar e outras plantas que compõem esses ciclos econômicos brasileiros são retratadas com flores e frutos, numa vivacidade que as distancia de um debate sobre commodities. "Esse universo de personagens não humanos é uma outra maneira de recontar a história do Brasil. Eles também estavam aqui na chegada dos portugueses", afirma o organizador da mostra.

É um debate latente também na literatura -- a Flip do ano passado dedicou sua programação a essa discussão com autores que dão protagonista aos vegetais, como Alejandro Zambra, de "Bonsai" e "A Vida Privada das Árvores", e o biólogo Stefano Mancuso, de "Revolução das Plantas".

Também faz parte da exposição no Masp o conjunto de monotipias que ele fez para a edição de "Macunaíma" publicada pela editora Ubu, com a impressão feita a partir das próprias plantas secas, como se elas pintassem o papel.

"Em 'Macunaíma', de novo, veio a história do passado para o presente com o Makunaima de Jaider Esbell", diz Zerbini, lembrando a grafia dos próprios makuxis para a entidade considerada um dos filho do Sol. Esbell, artista makuxi, morto no ano passado, retomou a história de seu tataravô, que teria sido o indígena a fazer os relatos que culminaram no livro de Mário de Andrade. O artista questionava a pecha do herói sem nenhum caráter que ele ganhou na literatura brasileira.

"Esbell conta que o avô falou para ele que se sabia que tudo isso ia acontecer e que as pessoas se apropriariam do livro e que não iam ganhar nada com isso. Mas que, no futuro, ele ia conseguir fazer com que a história de Macunaíma voltasse já com condições de rever a história do Brasil, e fazer algo que eles não foram capazes de fazer décadas atrás."

LUIZ ZERBINI: A MESMA HISTÓRIA NUNCA É A MESMA

Quando: Abertura em 1º de abril. Ter., das 10h às 20h. Qua. a dom., 10h às 18h. Até 5 de junho

Onde: Masp - av. Paulista, 1.578, São Paulo

Preço: Ingressos a partir de R$ 50; grátis às terças