SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) - Palmares nunca deixou de ser um campo de batalha simbólico, ainda que tenha sido fisicamente destruído há mais de três séculos. Um dos caminhos para dissipar parte da névoa histórica que cerca o maior dos quilombos é entender a origem dos documentos que narram sua saga, uma tarefa que o livro "Guerra Contra Palmares: O Manuscrito de 1678" enfrenta de peito aberto.

O resultado é uma breve mas eficiente aula, que ajuda a compreender não apenas o Estado afro-brasileiro que desafiou senhores de engenho durante quase cem anos como também a própria natureza dos documentos históricos, a complexidade das teias de transmissão que permitiram que eles chegassem até nós e os contextos políticos e sociais nos quais eles são passados de mão em mão.

Tudo começa, é claro, com o manuscrito do título, analisado pela historiadora Silvia Hunold Lara, da Unicamp, e pelo filólogo Phablo Fachin, da USP. Talvez fosse o caso de usar o plural "manuscritos", aliás, já que o texto sobre os combates entre as milícias do Nordeste colonial e os habitantes de Palmares na segunda metade do século 17 existe em duas versões, uma arquivada na Torre do Tombo, em Lisboa, e outra na Biblioteca Pública de Évora, também em Portugal.

Claramente escritos pela mesma mão, os manuscritos não estão datados nem assinados. O conteúdo geral da narrativa -ou "relação", como se costumava dizer na época em que foram produzidos- já era de conhecimento dos historiadores desde 1859, ano em que uma versão impressa dela foi publicada pela primeira vez, na Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro. Mas o mistério sobre a autoria e as circunstâncias em que o texto foi produzido persistiam.

O trabalho de detetive da dupla de organizadores permitiu que a versão final do manuscrito fosse localizada com precisão na Torre do Tombo, e que sua produção fosse atribuída ao padre baiano Antônio da Silva, que foi vigário da igreja matriz do Recife entre 1658 e 1697. Tanto o manuscrito que está em Lisboa quanto o de Évora são apresentados na íntegra no novo livro, junto com uma série de documentos inéditos (cartas escritas no Nordeste pelos líderes do ataque a Palmares e relatórios da burocracia colonial portuguesa, por exemplo) que ajudam a iluminar a narrativa do religioso.

A "relação" do padre Antônio da Silva não deixa de ter algum charme literário, como se tivesse sido escrita por um primo menos brilhante do padre Antônio Vieira, mas que ainda assim não faz feio. O vigário baiano se esforça por apresentar o combate contra os palmarinos como um épico, no qual a persistência e coragem das milícias coloniais acabou vencendo não só os escravos rebeldes como a própria natureza agreste de uma região na qual "são montuosas as serras, infecundas as árvores, espessos os matos, os espinhos são infinitos, as ladeiras muito precipitadas".

"Os negros são senhores daqueles matos e experimentados naquelas serras, o uso os tem feito robustos naquele trabalho e fortes naquele exercício, com que nestas jornadas nos costumam fazer muitos danos", escreve ele.

O texto traz vislumbres do que parece ter sido a organização social, política e até religiosa de Palmares: uma série de vilas fortificadas espalhadas por uma grande área de matas do interior nordestino, aparentemente governadas por uma família estendida de "potentados" sob o comando de um "rei"; uma intensa atividade agrícola, que incluía o comércio com povoados coloniais vizinhos; e até a presença de igrejas, nas quais teria sido praticada uma forma simplificada de catolicismo.

O religioso encerra sua narrativa com o que parecia ter sido a rendição dos palmarinos remanescentes às autoridades do Recife, depois de uma série de derrotas dos ex-escravizados (significativamente, porém, os sobreviventes recebem a alforria e o direito às suas terras, sinal de que sua derrota foi muito menos avassaladora do que os senhores de engenho talvez desejassem).

Uma das ironias da "relação", é claro, tem a ver com o fato de que Palmares, apesar do tratado de paz dos anos 1670, continuou a ser um foco de resistência dos africanos do Nordeste por mais duas décadas, pelo menos até a morte do líder Zumbi, em 1695.

Conforme mostram os organizadores do livro, o padre pode ter pintado os acontecimentos que presenciou de maneira particularmente favorável como forma de enaltecer o herói de sua narrativa, dom Pedro de Almeida, que estava deixando o governo da capitania de Pernambuco naquela ocasião e tinha interesse em apresentar um documento laudatório como aquele ao governo português.

A obra apresenta ainda um instrutivo passeio pela história da transmissão, adaptação e análise da narrativa sobre Palmares, dos historiadores do Brasil imperial a pesquisadores estrangeiros no século 20. Talvez o detalhe mais interessante tenha a ver com a incerteza que ainda paira até sobre a pronúncia e a etimologia dos nomes dos líderes de Palmares (afinal, o correto seria Zambi ou Zumbi? Ganazona ou Ganga-zumba?). Nem o padre Antônio da Silva parecia estar seguro a esse respeito, trocando grafias de um manuscrito para outro.