FOLHAPRESS - O primeiro problema em "Kimi" é saber quem de fato é Angela, a personagem vivida por Zoë Kravitz -sua protagonista e quase única personagem.

Objetivamente, ela trabalha como analista para a empresa Amygdala, inventora da criatura Kimi, similar a uma Siri ou Alexa. Diferente desses robôs, segundo propaga a empresa, Kimi é monitorada por humanos, o que faz com que os diálogos sejam menos, digamos, mecânicos, feitos pelo algoritmo. É baseado em Kimi que a empresa quer ganhar uma montanha de dinheiro.

Angela fica no computador acompanhando as conversas e tratando de incorporar novas palavras e entendimentos a Kimi. Esse é o lado superficial de sua vida.

Angela trata muito da saúde e faz exercícios, mas nunca sai de casa. Podemos pensar que a fobia foi adquirida durante a pandemia, já que até dos dentes Angela trata online. A bela garota de cabelos azuis parece bem intrigante.

O limite de seu mundo é a janela do apartamento, por onde ela contempla a vizinhança. Chega a marcar encontro com o simpático vizinho Terry, embora nunca tenha coragem nem sequer de cruzar a rua para conhecer o rapaz no food truck em frente. Saberemos depois que sua fobia do mundo exterior resulta de um estupro, o que não a impedirá de receber Terry em seu apartamento -onde ele entra meio na marra- nem de transar com ele.

Kimi dedica a maior parte de seu tempo ao trabalho. E, durante a escuta de uma ligação, identifica, ao fundo, a voz de uma mulher pedindo socorro. Estamos, pois, num registro bem hitchcockiano -as janelas do prédio em frente, a janela do computador (chamada habitualmente de tela) são os lugares centrais da trama. Além do crime sexual que, filtra daqui, filtra dali, se revela gravado na fita de Kimi.

Temos então dois mistérios --quem é Angela e o que ela escutou efetivamente. O restante diz respeito ao que acontecerá à garota. Ela terá de sair de seu apartamento, isso é certo, já que denuncia o que escutou à chefia da empresa.

Daí por diante, porém, o filme começa a mostrar limitações. Se Angela é perturbada mentalmente, o filme não trabalha sobre isso, a não ser de modo protocolar. Ela não pode estar ouvindo coisas? Isso passa ao largo do filme.

Em troca, ela se verá pivô de uma imensa conspiração destinada a ocultar o que ela escutou, seja lá o que for. Entramos então numa seara tradicional e limitada -o filme de perseguição em que a moça terá de demonstrar uma habilidade de que até então parecia incapaz.

Desde então é de uma luta entre profissionais contra uma amadora. Um conflito desigual, é claro, mas em que se situa a melhor parte do filme, a ação.

O fato de a ação demorar para acontecer pode prejudicar o desempenho do longa a olhos mais acostumados à agitação contínua. Mas o fato de ser, de longe, a parte mais interessante do filme demonstra que a questão, que me parece central, nunca Steven Soderbergh se empenhou em responder -quem é, afinal, Angela?

Faz parte de seu comportamento mais frequente como cineasta -lançar uma isca de questões "sérias", para depois melhor se ajeitar no filme bem "mainstream", de grande aceitação.

"Kimi" é, em resumo, um filme que se elabora a partir de dados muito presentes na atualidade -tecnologia (computação, automatismo) em confronto com fatores humanos (agressões sexuais) e a dupla grandes corporações e gangsterismo formando um conjunto indissociável.

Nenhuma das preocupações levantadas ao longo da trama é injustificável, ao contrário. Existe nelas algo de excessivamente conhecido, quase consensual. O interesse mais duradouro poderia vir da soma desses fatores.

Mas não é a soma que interessa aqui, e sim o produto. Um produto de consumo, como são Siri, Alexa, Kimi. Isso é que faz com que o novo filme de Soderbergh seja facilmente digerível e também facilmente esquecível, a não ser pelo potencial estelar de Kravitz.

KIMI: ALGUÉM ESTÁ ESCUTANDO

Onde Disponível no HBO Max

Classificação 16 anos

Elenco Zoë Kravitz, Erika Christensen e Rita Wilson

Produção EUA, 2022

Direção Steven Soderbergh

Avaliação Regular