BAURU, SP (FOLHAPRESS) - A Justiça do Reino Unido autorizou, nesta quarta-feira (13), a abertura de um processo para analisar a legalidade de uma diretriz do governo britânico que orienta ministros e funcionários públicos a configurarem aplicativos de mensagens instantâneas de forma que o conteúdo das conversas não seja armazenado.

Durante a ação, movida por duas organizações sem fins lucrativos, a política de uso de aplicativos como o WhatsApp e o Signal -ambos de propriedade do Facebook- foi tornada pública no tribunal.

"Mensagens instantâneas são fornecidas a todos os usuários e devem ser usadas no lugar do email para comunicações de rotina, em que não há necessidade de manter um registro da comunicação", diz um trecho da diretriz, que especifica: "O histórico de mensagens instantâneas em bate-papos individuais e em grupo deve ser desativado e não deve ser retido após o término de uma sessão".

Os grupos Citizens e Foxglove, que, entre outras causas, militam pelo uso governamental transparente da tecnologia, descreveram a orientação como "uma bagunça confusa e contraditória".

Para os ativistas, a diretriz representa uma ameaça às leis de acesso a informação, particularmente à Lei de Registros Públicos, de 1958, que exige que o governo preserve e armazene documentos oficiais cujo conteúdo seja de interesse público.

O processo de revisão judicial, no direito britânico, é uma forma de controle e análise da legalidade de atos administrativos de órgãos públicos. Grosso modo, seria o equivalente à análise da constitucionalidade de um ato normativo ou uma lei no Brasil -exceto pelo fato de que, no Reino Unido, não há uma Constituição nos moldes da brasileira.

Ao autorizar o procedimento, a juíza Beverley Lang, da Alta Corte (terceira instância), permitiu, portanto, que seja avaliada a legalidade da orientação do governo para o não armazenamento de conversas em apps de mensagens.

"É um bom dia para a democracia", disse Clara Maguire, diretora do Citizens, acrescentando que a falta de transparência é um problema central da "desastrosa" gestão feita pelo país da crise da Covid-19.

A ativista citou um contundente relatório do Parlamento, divulgado na última terça (12), que aponta a resposta inicial britânica à pandemia como "um dos maiores fracassos da saúde pública".

"[O relatório] diz que uma cultura de sigilo contribuiu para dezenas de milhares de mortes em excesso. Acreditamos que esse caso vai direto ao cerne do problema e esperamos provar que o 'governo pelo WhatsApp' [como tem sido chamada a comunicação pública pela plataforma] não é apenas perigoso, mas também ilegal", afirmou a ativista.

Em entrevista à BBC, a diretora do Foxglove, Cori Crider, disse que a decisão desta quarta é a primeira desse tipo e levanta uma discussão crítica para os governos modernos. "Estamos fazendo isso para defender a integridade de nosso debate público. Não podemos aprender com a história se as evidências desaparecerem no ar."

O gabinete do governo britânico disse que não comenta casos jurídicos específicos, mas um porta-voz, por meio de uma mesma nota divulgada a diferentes veículos de comunicação, afirmou que "os ministros usarão uma variedade de formas modernas de comunicação para discussões, de acordo com os requisitos legislativos e levando em consideração as orientações do governo".

O uso de serviços privados de comunicação por agentes públicos, especialmente ministros, tem tido lugar de destaque no noticiário britânico dos últimos meses.

Em maio, Dominic Cummings, que já foi o principal conselheiro do primeiro-ministro britânico, disse, durante um longo e controverso depoimento no Parlamento, que Boris Johnson era inadequado para a função e que, por ignorar evidências científicas, levou o país a cometer "falhas catastróficas" na resposta à pandemia.

Para sustentar as afirmações, ele apresentou mensagens trocadas com Boris pelo WhatsApp. O conteúdo, no entanto, só estava disponível por meio de capturas de tela feitas pelo ex-conselheiro, já que a plataforma permite que se configure a exclusão automática das conversas após determinado período de tempo.

Cummings integrou o governo até novembro de 2020, quando disputas internas o forçaram a sair. Aos parlamentares, ele disse que tentava criar "um cordão de segurança em torno do premiê, para impedir decisões extremamente equivocadas", mas que chegou a um beco sem saída quando Boris se recusou a implantar um novo lockdown, em setembro do ano passado, para frear a disseminação do coronavírus.