PORTO ALEGRE, RS (FOLHAPRESS) - Em 1968, um ano antes de morrer, João Cândido Felisberto, o homem que ficou conhecido como líder da Revolta da Chibata (1910) -movimento que acabou com os castigos físicos na Marinha--, concedeu uma entrevista ao MIS (Museu da Imagem e do Som) onde recordava sobre o episódio e sua vida como marinheiro.

"João Cândido nunca existiu na Marinha", disse ele. No fim de outubro, comissão do Senado aprovou proposta para incluir o nome do marinheiro no Livro dos Heróis e Heroínas da Pátria. Caso o projeto avance e seja sancionado, será a conclusão de mais de uma década de tentativas de reconhecer o "Almirante Negro", oficialmente, entre os nomes da história nacional.

Há mais de 50 anos, o entrevistador questiona se é verdade que nos arquivos da Marinha não consta nada em seu nome. "Foi sonegado. Sonegado mesmo. Pelo fato de haver tomado a posição que tomaram na revolta, pelo ódio. Muitos oficiais não conseguiam comandar o Minas Gerais [encouraçado] e eu tive o sobejo poder de dominá-lo, fazer o que eles jamais fariam na baía do Rio de Janeiro", conclui.

Documentos e a ficha funcional de João Cândido na Marinha vieram a público apenas em 2008, graças a pesquisa de um grupo de historiadores da Uerj (Universidade do Estado do Rio de Janeiro), no Arquivo Histórico Nacional. A reportagem da Folha na época registrou que a ficha do ex-marinheiro, que entrou em 1895, como grumete, apontava que ele foi castigado nove vezes com prisões, ficando de dois a quatro dias em solitária, e duas vezes rebaixado de cabo para marinheiro. Não havia registro de castigo físico. Dos dez elogios recebidos por ele, o último por bom comportamento fora três meses antes da revolta.

O historiador José Murilo de Carvalho explica que João Cândido não foi o líder intelectual da revolta, posição de Francisco Dias Martins, paioleiro do Scout Bahia, mas salienta que a revolta começa pelo Minas Gerais, onde ele era o timoneiro, já que foi o último local onde a chibata foi aplicada como castigo -a punição de 250 chibatadas a um marinheiro foi o estopim.

O próprio João Cândido diz que era "um dos chefes", citando os comitês revolucionários que formaram na época, ainda antes da revolta, e diz que assumiu a liderança já indicado por eles.

"[Queríamos] combater os maus-tratos e má alimentação da Marinha, e acabar definitivamente com a chibata na Marinha. O causo era este. Nós que viemos da Europa, em contato com outras Marinhas, não podíamos mais admitir que, na Marinha do Brasil, um homem tirasse a camisa para ser chibateado por outro homem", diz João Cândido na gravação.

Passados 111 anos da revolta, a Marinha diz não reconhecer "ato de bravura" no episódio, como afirmou em nota recente lida no Senado, chama a atenção para a quebra de hierarquia e disciplina, cita mortes e se posiciona contra exaltar os revoltosos.

"Aquilo foi uma pequena revolução social e toda revolução social é uma quebra de hierarquia. A Independência do Brasil foi uma quebra de hierarquia, a República também", diz Mário Maestri, historiador e autor de "Cisnes negros: uma história da Revolta da Chibata" (Ed. Moderna).

"O que incomoda é que João Cândido dirigiu uma revolta da mais poderosa Marinha de Guerra que já teve no Brasil, venceu contra os oficiais e as elites brasileiras, e ainda por cima era negro", avalia Maestri.

"Esses mais de 2.300 e tantos marinheiros sofreram uma repressão grande que ainda não foi devidamente calculada. Cerca de 1.300 foram expulsos da Marinha na época, um total de 30 e tantos foram processados pelo Conselho de Guerra, os que foram mortos e fuzilados não existe um levantamento completo, mas até onde levantei, pelo menos cerca de 30 se conhece o nome e como morreram -- fuzilados em terra firme ou no mar. Houve um expurgo na Marinha", diz Marco Morel, um dos historiadores que localizou os documentos de João Cândido.

Ele é neto de Edmar Morel, jornalista e autor de "A Revolta da Chibata" (Ed. Paz e Terra), que batizou o movimento dos marinheiros com esse nome e trouxe o episódio e João Cândido de volta à memória com a publicação de seu livro em 1959.

"O principal que ficou disso é que, tamanho o medo da repressão, tanto as pessoas queriam se proteger dela, que se criou um silêncio de memória sobre isso. Até hoje os descendentes dos marinheiros que participaram da revolta não sabem, porque ficou escondido", conta Morel.

Apesar da anistia aprovada na época, a anistia a João Cândido e outros revoltosos só foi reconhecida de fato, postumamente, em 2008. Depois da revolta, ele foi expulso da Marinha, preso e, segundo o filho caçula, Adalberto Cândido, o Candinho, 82, sofreu perseguições quanto tentou entrar na Marinha mercante. Trabalhou por anos com peixes na Praça 15, no Rio de Janeiro.

"Meu pai nunca falou para a família [sobre a revolta], ele era uma pessoa muito discreta. Com o lançamento do livro, que foi um best-seller, que ele chegou a falar para mim", diz Candinho, que acompanhou o pai em homenagens e recebeu outras tantas, durante anos, em nome dele.

Morel conta que seu avô também pagou um preço apenas por ressuscitar a história da revolta: seus direitos políticos foram cassados após o golpe de 1964.

"A cassação encerrou a carreira dele de jornalista e foi causada pelo livro", diz. "O que eu ouvi contarem, colegas dele jornalistas, é que, depois do golpe, quando meu avô arranjava emprego em uma redação, ia lá um grupo de oficiais da Marinha, fardados, e ameaçavam, que ele tinha que ser demitido".

Aparício Torelly, o Barão de Itararé, chegou a ser agredido por oficiais da Marinha depois de publicar capítulos de um livreto sobre a revolta em seu jornal, em 1934.

Já durante a ditadura, Aldir Blanc teve de comparecer ao departamento de censura mais de uma vez, devido a música composta por ele e João Bosco em homenagem a João Cândido, "O Mestre-Sala dos Mares". O título teve de ser mudado duas vezes, porque o censor achava que "O Almirante Negro" e "O Navegante Negro" eram apologia aos negros.

"Foi a maior manifestação de racismo que já vi", disse Blanc, que relatou ainda ter ouvido ameaças veladas do Cenimar (Centro de Informações da Marinha).

Naquele mesmo 1968 da entrevista de João Cândido, o regime militar baixou o AI-5, ato que marcou o endurecimento da ditadura. Quatro anos antes, poucos dias antes do golpe, João Cândido participou de um encontro no Sindicato dos Marinheiros, em comemoração a associação, o que era visto como ilegal -- a reunião foi proibida pelo ministro da Marinha da época.

Na gravação com o MIS, o ex-marinheiro chama o movimento militar que resultou no golpe de "movimento de salvação pública".

"A Revolta foi episódio traumático para os oficiais da Marinha. O trauma pode ter sido reforçado pela revolta dos marinheiros de 1964 e ainda não foi superado. A prova é que, 111 anos após a Revolta da Chibata, tenha havido a reação da corporação à colocação de João Cândido na lista dos heróis da pátria, mesmo sendo ela hoje uma instituição totalmente diferente da de 1910, e mesmo da de 1964", avalia o historiador José Murilo de Carvalho.

"Ele é um herói popular, não é da gente, porque a história dele é toda verídica, não tem farsa. Toda classe social aceita ele como herói e a família agradece por esse movimento que vem sendo feito para ele. É como a música do João Bosco e Aldir Blanc, vai passar séculos e ainda vão cantar 'há muito tempo nas águas da Guanabara'", diz o filho Candinho.