PORTO ALEGRE, RS (FOLHAPRESS) - O escritor Jeferson Tenório estava em São Paulo, há cerca de duas semanas, cumprindo agenda de divulgação de seu livro "O Avesso da Pele", lançado há dois anos pela Companhia das Letras, quando se deparou com mensagens de ameaça em seu perfil no Instagram por causa de uma palestra marcada para dias depois em uma escola, em Salvador.

Nelas, o usuário do perfil "estudante_anonimo123" diz estar "invocado na disgraça", dirige xingamentos ao escritor e ao livro, que venceu o Prêmio Jabuti 2021, e afirma que seria melhor ele deixar o país ou, caso contrário, Tenório teria o seu CPF cancelado --expressão usada para se referir à morte de alguém.

"Se vc n for p a escola tamo sussa. Mas se vc for já sabe. Eh pegada esquadrão de aço", diz um trecho das mensagens.

Escritor Jeferson Tenório, autor de "O avesso da pele", obra vencedora do prêmio Jabuti, que fala de relações entre pais e filhos e racismo estrutural na sociedade Tenório comunicou a editora Companhia das Letras e a escola onde o evento seria realizado, a Land School, que oferece ensino bilíngue, sobre as mensagens. A palestra acabou sendo realizada em formato online por questão de segurança, mesmo com a presença dele na capital baiana.

O escritor também registrou um boletim de ocorrência na Polícia Civil da Bahia e evitou sair desacompanhado em Salvador. Nascido no Rio de Janeiro, ele é radicado há anos em Porto Alegre.

A Polícia Civil baiana diz que providências para a identificação do autor do crime já foram iniciadas e que o escritor será ouvido.

O caso se tornou público na semana passada, depois que outro perfil, identificado como "BaheaNaVeia", com imagem do time Esporte Clube Bahia, voltou a enviar ameaças ao escritor, mesmo depois da realização da palestra.

"Eu mando vc nn ir aí vc fik com medo e faz essa poha online", diz uma das mensagens. "Melhor sair do país. Eu tenho seu endereço, vc tá fudido. Babaca."

A decisão de trazer o caso à tona foi avaliada por Tenório, junto a pessoas próximas a ele. O escritor chegou, inclusive, a compartilhar para seus mais de 20 mil seguidores numa rede social reportagem do jornal O Globo sobre as ameaças.

Um dos compromissos de Tenório em Salvador foi um encontro com Itamar Vieira Júnior, autor de "Torto Arado". O livro é exemplo de obra que tangencia questões de raça e classe ao falar da história de duas irmãs que são submetidas à condição análoga à de escravos. Os dois comentaram as ameaças, e Vieira Júnior disse nunca ter enfrentado situação semelhante.

Tornar público "é mostrar para a sociedade que também estamos de olho no que essas pessoas racistas, fascistas estão fazendo. Há um grande custo, essa exposição pessoal não é nada agradável. Eu queria estar falando de literatura, mas estou falando de ameaça de morte. O problema se tornou maior e não tive como abafar isso", diz Tenório à reportagem.

A escola Land enviou uma nota à reportagem afirmando que rechaça qualquer tipo de ameaça e que está à disposição das investigações.

"É de nosso interesse descobrir a autoria das mensagens e, caso seja comprovado que se trata de um membro da nossa comunidade, a escola adotará todas as medidas disciplinares cabíveis", diz o texto. "Temos certeza de que o letramento literário é uma ferramenta potente, que fortalecerá nossos estudantes para enfrentar um mundo complexo e extremamente competitivo

A Companhia das Letras publicou uma nota em seu Instagram em apoio ao escritor.

"Repudiamos os ataques e ameaças desferidos contra o autor e nos opomos, assim, a qualquer ato violento, opressivo e antidemocrático que se imponha também no ambiente digital. As medidas judiciais já estão sendo tomadas", diz o texto.

Colunas publicadas por Tenório no jornal Zero Hora já haviam desencadeado xingamentos, sobretudo duas delas --uma sobre o educador Paulo Freire e a outra sobre a oratória do ex-presidente Lula.

O escritor diz que o que o deixou mais surpreso no episódio atual foi a reação provocada por uma aula de literatura, na qual iria falar sobre seu livro. As mensagens citam o Prêmio Jabuti, que ele venceu no ano passado, na categoria de melhor romance literário.

"O Avesso da Pele" conta a história de um pai e um filho, dois homens negros, vivendo em Porto Alegre, e como suas vidas e relações, com os outros e entre si, são marcadas pelo racismo estrutural. A história começa com o filho enfrentando a morte do pai, um professor de literatura da rede pública, vítima de violência policial.

"É um nível de estresse, tem que reduzir a sua caminhada na rua, você fica num estado de vigilância o tempo todo, não relaxa, porque fica naquela coisa, pode ter sido só um adolescente, mas pode ser alguém de fato que possa fazer alguma coisa. Começa a se questionar também se deve levar as ameaças a sério. É um estado de terror", diz o escritor.

Para ele, as ameaças são ainda um reflexo do que vê como um "Estado fascista" que se instalou no Brasil, desde as eleições de 2018.

"Me parece que essas ameaças são fruto, reflexo disso. E, claro, dentro disso temos uma posição racista, preconceituosa, que vê autores negros com visibilidade e não aceita que tenham destaque. Esse racismo escancarado é desse estado fascista que se instalou no Brasil".