CANNES, FRANÇA (FOLHAPRESS) - Quando o homem sai do táxi e caminha aos pés de uma necrópole antiga, ainda não sabemos quem ele é nem quais são seus dramas particulares. Mas nessa tomada, a mais ampla de seu novo filme, o iraniano Ashgar Farhadi reduz seu herói à dimensão de uma formiga contra o paredão de pedra em que foi escavada a tumba do imperador Xerxes.

São poucos segundos antes de a câmera voltar à perspectiva do ombro do protagonista de "O Herói", que estreou nesta terça (13) no Festival de Cinema de Cannes. É o suficiente para mostrar que essa será a história de um indivíduo em si insignificante, mas cuja experiência é universal.

O homem que sobe a escada em meio a sons de ferramentas atende pelo nome de Rahim e, em seu primeiro diálogo, revela que tem um problema de dinheiro, mas espera resolvê-lo em breve.

Interpretado pelo iraniano Amir Jadidi, Rahim está numa saída temporária da cadeia, onde cumpre pena por calote. Poucos dias antes, caiu do céu a oportunidade de saldar sua dívida: Farkhondeh, sua namorada, encontrou na rua uma bolsa cheia de peças de ouro.

É a primeira reviravolta de várias que enredam Rahim, sua namorada e sua família numa teia kafkiana, na qual ele passa de herói a vilão e de novo a herói em questão de dias.

Sem conseguir vender o ouro, o presidiário decide procurar seu verdadeiro dono para devolvê-lo. O gesto atrai a atenção de diretores da cadeia, interessados em fazer dele um exemplo.

Rahim de início resiste: "Não fiz nada de especial", afirma antes de ser entrevistado por uma emissora de TV. Além disso, ele quer proteger Farkhondeh, cuja família ainda ignora o namoro.

Como isso o impediria de contar a história em público, um de seus guardiões o convence a dizer que foi ele quem encontrou o ouro. Entre ingênuo e encantado com os refletores, Rahim concorda.

Essa primeira falha, que cobrará seu preço mais tarde, é a última revelação deste texto sobre o enredo: guinadas inesperadas são a essência do filme, e revelá-las seria um desserviço ao espectador.

O que é possível dizer sem estragar prazeres é que ninguém é tão bom ou tão mau quanto parece à primeira vista. Nem o fiador de Rahim, responsável por sua prisão, nem o futuro empregador que desconfia de sua história, nem a instituição de caridade que tenta ajudá-lo.

As mídias sociais, capazes de construir ou destruir reputações, também encontram seu lugar em "O Herói", já que são o "espaço perfeito para mal-entendidos", segundo Farhadi, 49.

"Você usa poucas palavras para apresentar uma notícia, uma pessoa, uma história. E muitas vezes a situação ou a pessoa são mais complexas, precisariam de mais espaço para realmente apresentar as nuances", afirmou o diretor à revista Variety.

"O Herói" é o quarto filme de Farhadi em Cannes, onde ele ainda não levou a Palma de Ouro. "O Passado" (2013) ganhou o prêmio do júri ecumênico, e "O Apartamento" (2016), de melhor roteiro. Sua participação mais recente foi com "Todos Já Sabem" (2018), rodado em espanhol.

Um dos poucos diretores a ter vencido dois Oscar de melhor filme estrangeiro, com "O Apartamento" e "A Separação" (2011), Farhadi também ganhou o Urso de Ouro e o prêmio do júri ecumênico do Festival de Berlim por esse último filme. "Procurando Elly", de 2009, levou o Urso de Prata de melhor diretor.

Como nos sucessos anteriores, em "O Herói" ele mostra talento para exibir cenas de forte carga emocional com poucas palavras e até com pouca ação -embora ela apareça de forma decisiva ao longo da trama.

Grande parte desse efeito vem da câmera que acompanha de perto os atores e coloca a plateia dentro da cena. É pelo olhar, tom de voz, ritmo da respiração e movimento dos corpos que o diretor imprime as variações interiores de seus personagens.

Esse matiz só é quebrado pelo personagem do filho de Rahim, um menino muito gago cuja participação na trama acrescenta sempre tristeza e aflição. No fim, Farhadi leva seu herói para o mesmo lugar de onde partiu. Mas, com outro ponto de vista, pela esquadria da porta Rahim assiste a um futuro possível.