SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) - Menos restaurantes, menos viagens, mais refeições em casa. E nessas refeições, menos carnes, mais ovos. As mudanças de comportamento nos últimos 15 meses de pandemia alteraram os hábitos de compras das famílias e a estrutura das despesas. Para o cálculo da inflação oficial, porém, nada mudou, e tampouco há previsão de atualização em breve.

Esse descolamento entre os componentes da inflação e a composição de gastos na vida real tem relação com o modelo adotado pelo Brasil para a realização da atualização.

Na prática, não quer dizer que os índices oficiais, o IPCA (Índice Nacional de Preços ao Consumidor Amplo) e o INPC (Índice Nacional de Preços ao Consumidor), estariam maiores ou menores se a pesquisa que embasa a cesta de produtos fosse atualizada em intervalos menores. No entanto, a falta de sincronia sinaliza que os indicadores podem não expressar como as famílias sentem —ou não— a alta dos preços.

“Sem atualização por muito tempo, acaba criando mesmo uma distorção”, diz André Braz, coordenador de índices de preços do Ibre/FGV (Instituto Brasileiro de Economia da Fundação Getulio Vargas).

Na avaliação do pesquisador, neste momento, a diferença de pesos na cesta de produtores aparece com mais força no INPC, que é calculado considerando famílias com renda entre um e cinco salários mínimos.

A avaliação é a de que os alimentos deveriam ter um peso ainda maior agora. “Os alimentos subiram barbaramente. Essa já é uma despesa que sempre pesa para essa faixa, mas hoje está pesando ainda mais”, afirma.

Por outro lado, despesas decorrentes da adoção de home office têm peso menor entre os que ganham menos, mas poderiam aparecer com maior importância no IPCA, que calcula a inflação entre as famílias com renda de até 40 salários mínimos.

“O home office reduz o uso do transporte público e da gasolina e aumentam as refeições feitas em casa. Aumentam também gastos com serviços de comunicação e com celular”.

Além disso, diz o economista, falta um monitor para as substituições. “Se uma fruta fica muito cara, a gente substitui ou deixa de comprar, mas, mesmo assim, ela ganha peso no indicador da inflação”, afirma.

É o caso também das carnes. A Conab (Companhia Nacional de Abastecimento), órgão vinculado ao Ministério da Agricultura, calcula que o consumo de carne no Brasil esteja hoje 46% menor do que o registrado em 2006, quando esse hábito chegou ao pico. De 42,8 quilos, naquela época, hoje está em 27,6 quilos por habitante.

A queda vem na esteira do aumento de preço do produto e do desemprego –a taxa está em 14,7% e o número de desocupados chegou a 14,8 milhões no primeiro trimestre. A Conab projeta que a redução no consumo será ainda maior, chegando a 26,4 quilos por pessoa no final de 2021.

Parte do consumo de proteína migrou para os ovos, que ganharam status de prato principal ao substituir as carnes —e essa troca os índices de inflação não conseguem calibrar.

“É diferente do que acontece com a energia. Se ela fica mais cara, realmente pesa mais, porque não tem substituto. Essa é a vantagem de uma POF contínua”, diz Braz.

POF é a sigla para Pesquisa de Orçamento das Famílias, realizada pelo IBGE para identificar mudanças no padrão de consumo e atribuir pesos aos diferentes produtos.

A mais recente foi realizada em 2017 e 2018 e resultou na atualização da estrutura de cálculo em 2019, válida a partir do início do ano passado.

Entraram despesas com serviços de streaming, como Netflix e Spotify, transporte por aplicativos e produtos de higiene para animais domésticos. Saíram itens como aparelhos de DVD, antena e máquinas fotográficas.

Pedro Kislanov, gerente do IPCA, diz que a previsão do IBGE é que a atualização deveria ser feita a cada cinco anos.

No entanto, atrasos não são incomuns. A estrutura de cálculo anterior estava em vigor desde 2012 e usava dados da POF realizada em 2008 e 2009.

À reportagem, Kislanov disse considerar que a realização de uma pesquisa durante a pandemia acabaria registrando comportamentos atípicos e temporários.

Mudanças vistas no início da pandemia, entre março e abril de 2020, como a redução no uso de transportes, já estão em outro patamar atualmente, com a redução das restrições para circulação.

No Reino Unido e em países da zona do euro, a atualização da cesta de produtos e seus pesos é feita anualmente, permitindo que mudanças temporárias nos hábitos de consumo sejam captadas mais rapidamente.

“Pesquisa é uma coisa cara. Lá fora, eles têm uma POF contínua, a apuração é quase em tempo real. Você começa o ano já ajustado, dá um dinamismo maior”, diz André Braz, da FGV.

Com isso, o efeito da pandemia sobre a dinâmica de despesas das famílias já está sendo considerado no cálculo da inflação desses países.

Desde março, quando o Reino Unido divulgou a revisão mais recente, desinfetante para as mãos, roupas confortáveis e halteres para atividade física em casa passaram a integrar a lista de produtos analisados.

Na União Europeia, a atualização da cesta de produtos e os pesos dados a cada um deles é divulgada sempre em janeiro.

Essa dinamicidade maior permitiu, por exemplo, permitiu que os cálculos deste ano reduzissem o peso de itens como hotéis, restaurantes e combustíveis.

Nos Estados Unidos, a periodicidade da revisão é bienal. Estudo do professor Alberto Cavallo, da Universidade Harvard, divulgado pelo Financial Times, aponta que a inflação norte-americana pode ter sido subestimada em 0,5 ponto percentual em 2020.

A estimativa do pesquisador é a de que a experiência de inflação “do mundo real” se diferencie daquela apurada pelos órgãos oficiais em 0,89 ponto percentual em apenas um mês.

No Brasil, a realização com mais frequência da pesquisa de orçamento chegou a ser cogitada, mas o projeto não andou. Atualmente, o IBGE enfrenta cortes orçamentários que cancelaram até mesmo o censo, uma das pesquisas oficiais mais importantes para balizar políticas públicas.

André Braz, da FGV, defende que o próprio governo extrairia benefícios de uma melhoria na apuração da inflação. “Permitiria reduzir o esforço da política monetária”, afirma.