SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) - "Nas estações de trem de Kiev, crianças primeiro, mulheres em segundo lugar, homens brancos em terceiro, depois o restante das vagas é ocupada por africanos. Esperamos muitas horas pelos trens e não conseguimos entrar devido a isso." Em sua conta no Twitter, um estudante nigeriano conta como é tentar fugir da guerra da Ucrânia sendo negro.

"Tivemos que gritar e empurrar mulheres africanas para dentro do trem, para que não tivessem opção a não ser deixá-las entrar, já que estão priorizando mulheres e crianças", continua, em um post na sexta (25).

Dois dias depois, já na fronteira com a Polônia, ele continuou a denunciar o que chama de "hierarquia racial" para passar pela fronteira. "Vejam como eles ameaçam atirar na gente! A polícia e o Exército se recusaram a deixar os africanos atravessarem, só deixaram os ucranianos. Alguns dormiram aqui por dois dias nesse frio cortante, enquanto outros tiveram que voltar."

Com relatos como esses reunidos pela hashtag #AfricansinUkraine (africanos na Ucrânia), africanos e outros imigrantes negros que vivem no país afirmam que estão sendo vítimas de racismo ao tentarem se deslocar, sendo barrados em trens, ônibus e nas fronteiras por guardas ou outros cidadãos ucranianos.

Em resposta, governos como o da Nigéria divulgaram comunicados dizendo que foram informados de situações do tipo e condenaram o tratamento discriminatório. Um dos vídeos mostra uma mulher com um bebê de dois meses no colo, sentada no chão sob uma temperatura de 3 ºC, enquanto um homem não identificado afirma que ela não conseguiu passar pela fronteira, como outras mulheres com crianças.

Outra gravação, de um ativista britânico, mostra um grande número de jovens, todos negros, do lado de fora de um trem. "A face oculta dessa guerra é o racismo experimentado por muitos que estão fugindo."

Em outro caso, a ministra das Relações Exteriores da Jamaica, Kamina Johnson-Smith, afirmou no Twitter que 24 estudantes jamaicanos estão sendo forçados a caminhar 20 km até a Polônia, após serem impedidos de embarcar em um ônibus que levava estudantes até a fronteira.

Após conseguir atravessar para a Romênia, uma estudante de medicina britânica negra conta, num vídeo, como foi recebida no setor de controle de passaportes na saída ucraniana. "Eram ucranianos primeiro, indianos depois, africanos por último. Tem tido muita segregação. É uma situação muito estressante."

Cidades sitiadas em toda a Ucrânia abrigam dezenas de milhares de estudantes africanos que estudam medicina, engenharia e assuntos militares. Marrocos, Nigéria e Egito estão entre os dez principais países com estudantes estrangeiros na Ucrânia, fornecendo juntos mais de 16 mil alunos, segundo o Ministério da Educação, citado pela agência Reuters. Milhares de estudantes indianos também estão tentando fugir.

O governo da Nigéria divulgou um comunicado criticando os episódios. "Infelizmente houve relatos da polícia e das forças de segurança ucranianas se recusando a deixar nigerianos embarcarem em ônibus e trens que iriam para a fronteira com a Polônia", escreveu um porta-voz da Presidência, Garba Shebu.

"Em um vídeo que circula amplamente nas mídias sociais, uma mãe nigeriana com seu bebê foi filmada sendo forçada fisicamente a ceder seu assento para outra pessoa", continua.

Ele afirma que há também relatos de autoridades polonesas negando a entrada de nigerianos pela fronteira com a Ucrânia e defende que "todos sejam tratados com dignidade e sem privilégios".

Pai de três filhos, um nigeriano que vive na Ucrânia desde 2009 contou ao jornal The Independent que, no sábado, ele, familiares e outros imigrantes foram obrigados a desembarcar de um ônibus prestes a cruzar a fronteira. "Nenhum negro", teriam dito militares. "Quando olho nos olhos dos que estão nos rejeitando, vejo racismo injetado; eles querem se salvar e estão perdendo sua humanidade no processo", afirmou.

Outros estudantes africanos contaram ao diário britânico terem enfrentado hostilidade em situações parecidas, inclusive na entrada da Polônia. Segundo o político nigeriano Femi Fan-Kayode, a Polônia e outras nações europeias estão permitindo que ucranianos, indianos e árabes em fuga cruzem a fronteira e se refugiem no país. "As únicas pessoas que estão barrando são africanos negros, e agora existem centenas de estudantes presos na fronteira polonesa", escreveu ele, ex-ministro do Turismo, no Twitter.

"O pior de tudo é o fato de que os próprios ucranianos não estão permitindo que africanos embarquem nos trens gratuitos que forneceram para ucranianos e outros cidadãos deixarem a Ucrânia e fugirem para a Europa. Há relatos de que a polícia ucraniana entrou nesses trens gratuitos e removeu todos os africanos, dizendo que eles tinham que ficar, enquanto permitiam cidadãos de TODOS os outros países."

Segundo a agência de notícias AFP, a embaixadora da Polônia na Nigéria, Joanna Tarnawska, rejeitou as alegações de tratamento injusto. "Todos recebem tratamento igual. Posso garantir que tenho relatos de que alguns cidadãos nigerianos já cruzaram a fronteira para a Polônia", afirmou à mídia local.

Ela disse que os nigerianos têm 15 dias para deixar a Polônia ou tomar outras providências e que até documentos inválidos estavam sendo aceitos para atravessar a fronteira. Restrições da pandemia, de acordo com a embaixadora, também foram suspensas. Segundo o Ministério das Relações Exteriores da Nigéria, até este domingo (27) 130 nigerianos vindos da Ucrânia chegaram a Bucareste, 74 a Budapeste e 52 a Varsóvia -com outros 23 sendo cadastrados.

O governo de Gana também se pronunciou sobre seus cidadãos no país, dizendo que se reuniria com pais de estudantes retidos na Ucrânia e enviaria funcionários da embaixada aos pontos de fronteira para ajudá-los. A Costa do Marfim, que de acordo com a mídia estatal tem 500 cidadãos na Ucrânia, afirmou que também está tomando providências para realizar a retirada. O Ministério das Relações Exteriores do Quênia disse que 201 cidadãos estavam no país, a maioria dos quais estudantes.