SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) - O fantasma da Terceira Guerra Mundial, aquele conflito que fez Albert Einstein imaginar que a Quarta seria travada com paus e pedras, volta a assombrar o Ocidente 30 anos após aquele que parecia seu exorcismo final.

Tudo cortesia do embate subjacente à guerra que se desenrola na Ucrânia: a disputa entre Moscou e o conglomerado Estados Unidos/Otan, centrada no desenho das fronteiras de segurança do Leste Europeu. O Kremlin vê a expansão a leste de estruturas ocidentais como inaceitável.

Nesta terça (1º), o ministro da Defesa russo, Serguei Choigu, colocou em termos claros acerca do que é o "casus belli" do ataque à Ucrânia. "A principal coisa para nós é proteger a Rússia da ameaça militar dos países ocidentais, que estão usando o povo ucraniano na luta contra o nosso país", afirmou à agência RIA-Novosti.

Os coitados que de fato sofrem com a insegurança do Donbass, as supostas "armas nucleares que Kiev quer" e outros temas ficaram de lado.

Putin é um manipulador eficaz. No dia da declaração da guerra, quinta passada (24), ele sugeriu que usaria armas nucleares se o Ocidente se metesse em sua operação. No domingo, ante uma saraivada de sanções, decretou alerta máximo das forças estratégicas russas que havia exibido num exercício uma semana antes.

A lógica diz que ele está apenas ganhando manchetes, por assim dizer, enquanto apanha por todos os lados. E que fala grosso para seu próprio público, além de riscar no chão um limite se for em frente no recrudescimento dos ataques ao vizinho.

Com efeito, não faltam analistas especulando despreocupadamente se ele usaria na Ucrânia uma bomba atômica tática, de baixa potência (ou seja, igual à de Hiroshima ou à de Nagasaki). Lógica não tem sido boa conselheira nessa crise, mas isso parece demais.

Seja como for, o tema da Terceira Guerra Mundial passou a frequentar todas as entrevistas coletivas de autoridades do outro lado com uma desassombrada naturalidade.

Qualquer um que tenha crescido entre os anos 1950 e 1980 sabe o que é viver com a ideia da aniquilação nuclear, mesmo que o risco fosse exagerado muitas vezes em favor do embate ideológico. Mesmo a crise dos mísseis de Cuba (1962) poderia resultar na obliteração dos soviéticos, mas não dos americanos, muito mais fortes à época, por exemplo.

Desde o desmantelamento da União Soviética, em 1991, o fantasma contudo tirou férias. As bombas, não, ainda que o arsenal nuclear mundial tenha caído de 70 mil ogivas para cerca de 13 mil, 90% nas mãos de Moscou e de Washington. Diferentemente de líderes do Ocidente, contudo, Putin fala sobre o espectro sem nenhum pudor.

É o que tem a fazer, para garantir que a ajuda militar da Otan não se torne mais do que imagens de comboios com munição, para desespero da Ucrânia.

O país, aliás, tem pedido insistentemente a intervenção direta da aliança militar ocidental no conflito. Tem recebidos os devidos nãos, justamente pelo temor de uma confrontação imprevisível com a Rússia. Na segunda (28), requisitou a implantação de uma zona de exclusão aérea sobre o país.

Além da admissão clara de perda de controle sobre os céus sobre seu país, o governo de Volodimir Zelenski ainda jogou ele mesmo com a carta da escalada inevitável. "Hoje é a Ucrânia, amanhã será a Otan", disse o chanceler Dmitro Kuleba.

Por ora, ajuda militar será isso, ajuda, e restrita. Mesmo a promessa europeia de enviar caças para Kiev parece algo delirante, exceto que pilotos poloneses decolem para fazer entrega in loco de modelos MiG-29 que ucranianos operam —e arrisquem a Terceira Guerra.

Numa cena correlata na Estônia, o secretário-geral da Otan e o premiê britânico estiveram na base militar multinacional comandada por forças de Londres na pequena ex-república soviética, cuja entrada na Otan com suas irmãs bálticas Lituânia e Letônia em 2004 é o maior calo geopolítico de Putin, então um jovem presidente em primeiro mandato ensaiando boas relações com o Ocidente.

Um tanque Challenger 2 britânico e blindados de combate CV90 estonianos enfeitavam a cena, mas as autoridades ficaram nos floreios acerca da resistência ucraniana e em como a Otan irá se defender sempre e unida. Questões sobre ações contra a Rússia eram respondidas com evasivas usuais: a aliança é defensiva, não queremos brigar com o russos.

Coube à anfitriã, a primeira-ministra Kaja Kallas, tratar de realismo. "Ainda que a Ucrânia perca temporariamente o controle sobre suas cidades, isso será algo difícil de manter [para Putin]", afirmou.

Mas há provocações outras no ar. Sempre um ente à parte na estrutura da Otan, a autossuficiente França tem adotado uma retórica mais dura, com seu ministro das finanças falando que irá "destruir a economia russa" e lutar "uma guerra econômica total" contra Moscou.

Foi admoestado pelo ex-queridinho Dmitri Medvedev, que encantava americanos com seu jeitão de liberal quando fingiu ser presidente sob o premiê Putin de 2008 a 2012, e que hoje está encostado como número 2 do Conselho de Segurança do país. "Meçam as palavras, senhores! E não esqueçam que, na história humana, guerras econômicas costumam virar reais", postou no Twitter.

Se o fantasma dava sinais de vida nas preliminares da guerra, fazendo as potências nucleares assinarem uma promessa de nunca atacarem com armas atômicas, agora ele está no "novo normal" de que Jens Soltenberg (Otan) fala dia sim, dia sim.