SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) - Uma mulher que come a secreção de uma barata morta, um ovo que desperta dilemas filosóficos e um búfalo que é dono de um olhar misterioso. Todos conduzem "Abjeto-Sujeito: Clarice Lispector por Denise Stoklos", que estreia agora, no Sesc 24 de Maio, em São Paulo.

De volta aos palcos depois de quatro anos de ausência, Denise Stoklos, fundadora do chamado teatro essencial, se joga na dramaturgia de uma peça que evitou montar durante décadas e evoca, sem querer, os ares da guerra na Ucrânia, país que une a encenadora a Clarice, nascida em Chechel'nyk, em 1920.

"Você não veio me entrevistar. Veio para me conhecer, né? Deixe de lado a caneta e o bloco de anotações", disse Clarice a Stoklos, no fim dos anos 1960, quando a jovem foi até sua casa, no Rio de Janeiro, depois de descobrir seu endereço numa lista telefônica.

Stoklos diz que não se lembra de quase nada do encontro com a escritora, uma de suas favoritas. Mas guarda, com nostalgia, a sensação de ter ficado frente a frente com a autora de clássicos como "A Paixão Segundo G.H." e "Água-Viva", duas das obras que compõem o seu novo espetáculo.

Também integra a peça uma série de referências a canções soturnas eternizadas na voz de Elis Regina, como "Meio-Termo", "Os Argonautas" e "Se Eu Quiser Falar com Deus".

Com dramaturgia de Welington Andrade e direção de Elias Andreato, "Abjeto-Sujeito" mescla os elementos do indigno, desprezível e execrável que aparecem em vários textos de Clarice. "São objetos, animais e insetos que trazem a busca pelo sujeito através do inanimado", afirma Stoklos.

É a partir disso que a atriz traça uma relação entre a peça e a guerra na Ucrânia, que, assim como qualquer outra, resulta em inúmeros corpos reduzidos a uma condição estatística que pouco exprime os horrores deixados pelos conflitos.

"O sistema em que vivemos diminui o sujeito", diz Stoklos. "O indivíduo é sempre colocado em último lugar. E essa guerra que estamos acompanhando é um exemplo disso."

Mesmo forçando a aproximação dos temas tratados na peça e a encenação do abjeto com a mais grave crise militar na Europa desde a Segunda Guerra Mundial, o espetáculo vem sendo planejado desde 2020 e, por isso, é só uma coincidência infeliz com o contexto atual. Adiada diversas vezes devido à pandemia, teria estreado no ano passado, centenário da escritora.

Essa não foi a primeira vez, porém, que Stoklos cogitou fazer uma peça embalada pelas histórias da autora ucraniana. Fauzi Arap, que a dirigiu em "Ponto de Luz", de 1977, já havia convidado mais de uma vez a artista para trabalhar num espetáculo criado a partir de textos de Clarice, mas a atriz sempre recusou.

"O convite me intimidava profundamente, porque via como um universo quase inatingível. Enquanto experiência de vida, ainda me faltava muito para tocar em todas as questões sensíveis que Clarice toca. Ficava com receio de não saber fazer e, por isso, não queria."

A artista conta que só veio se sentir segura depois de dezenas de experiências com o teatro solo, que desembocaram no seu método do teatro essencial, conhecido por dar ao ator uma emoção que de fato pertença a ele, que é também, muitas vezes, seu próprio diretor, dramaturgo e adaptador de obras.

"Foi só depois de me apresentar em 33 países, em vários idiomas, que me senti realmente segura para trabalhar com textos da Clarice", afirma Stoklos. "O ato de transportar o texto para outros códigos fez com que trabalhasse a palavra de uma forma mais concreta, quase tátil."

"Abjeto-Sujeito" é o primeiro espetáculo de Stoklos desde 2018, quando adaptou "Extinção", do austríaco Thomas Bernhard, e segue uma linha minimalista, típica do método criado pela artista. "É uma obra extremamente simples. Não há acrobacias ou efeitos visuais incríveis. Não há nada além daquilo que a própria Clarice trazia."

ABJETO-SUJEITO: CLARICE LISPECTOR POR DENISE STOKLOS

Quando 10/3 a 03/4. Qui., sex. e sáb., às 20h, e dom., às 18h

Onde Sesc 24 de Maio, r. 24 de Maio, 109, São Paulo

Preço R$40 (inteira); R$20 (meia)

Classificação 14 anos

Elenco Denise Stoklos

Direção Elias Andreato

Acessibilidade