SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) - A guerra de Vladimir Putin na Ucrânia colocou o reinado do czar do século 21 em uma encruzilhada de opções radicalmente divergentes, com poucos caminhos intermediários que pareçam garantir a volta da Rússia à relativa normalidade de antes do início da invasão, em 24 de fevereiro.

Putin, como coloca Sam Greene, diretor do Instituto da Rússia do King's College de Londres, luta não só uma, mas várias guerras. E o resultado daquela militar será determinante para o das subjacentes, contra as elites russas, na opinião pública em geral e entre os poucos aliados que lhe restam.

De forma mais ampla, a própria natureza do regime que ele começou a montar em 9 de agosto de 1999, quando assumiu o cargo de primeiro-ministro, está na balança. Putin costuma ser pintado no Ocidente como um ditador. Há nuances sobre isso, mas que estão se perdendo com a dura repressão à oposição não consentida e à mídia nos dois últimos anos, que só fizeram exacerbar com a guerra.

O símbolo máximo do processo é a prisão de Alexei Navalni, blogueiro que organizou atos gigantes contra o Kremlin e acabou primeiro envenenado, depois detido. Hoje, aguarda julgamento que pode deixá-lo 15 anos preso, embora continue sendo visto como um "outsider" pelo russo médio.

Outros sinais abundam, como a transformação de meios de comunicação ou ONGs críticos em "agente estrangeiro", pelo recebimento de apoio do exterior, sendo assim submetidos a um regime tributário draconiano. O passo seguinte foi rotular os mesmos adversários como extremistas, fechando-os.

"Ainda assim, o país não era uma ditadura completa", diz Mikhail, cientista político moscovita que se exilou nesta semana em Riga, na Letônia, e pede para não ter o sobrenome divulgado. "Havia a vida do povo, a da classe média e a das elites, que mantinham uma fantasia de liberdade vigiada enquanto seu dinheiro e propriedades estavam seguros no Ocidente."

Isso dito, havia um resquício de imprensa livre, bem menor do que nos talvez 15 primeiros anos de poder de Putin. A anexação da Crimeia e a guerra civil na Ucrânia, em 2014, colocaram em marcha a mudança que agora explode com a invasão. "Pela primeira vez estou com medo de escrever o que penso aqui", disse a professora de inglês Irina, nome fictício, de Khabarovsk, cidade no extremo oriente russo.

O "aqui" era o aplicativo de mensagens Telegram. "Todo mundo passou a se sentir vigiado", conta ela, para então falar dos boatos que correm acerca da sanidade mental e física de Putin na crise.

Ela então cita a lei que permite punições como até 15 anos de prisão a quem falar mal da guerra ou mesmo chamá-la dessa forma. Ninguém sabe o alcance da legislação ou se ela não passará de um espantalho, mas o efeito tem sido razoável até aqui.

Um repórter de um dos veículos de imprensa ocidentais que suspenderam operações na Rússia devido à lei contou que, no dia seguinte à sanção das regras, dois policiais apareceram à sua porta e o acompanharam ao trabalho. Segundo ele, disseram que era "para sua segurança".

Mas essa erosão não parece ser definitiva para os planos de Putin, como a ausência expressiva de povo na rua devido ao medo de prisão prova. E também a eficácia de sua propaganda: segundo três institutos de pesquisa, estatais, diga-se, cerca de 60% dos russos aprovam a invasão. O caldo engrossa na guerra com a elite. Putin ascendeu de uma classe chamada "siloviki", os "durões", gente egressa da KGB e dos serviços de segurança. O presidente foi chefe do principal deles, o FSB, antes de chegar ao poder no país.

No início de seu mandato, em 2000, Putin era refém do status quo da era Boris Ieltsin, o mercurial presidente do pós-Guerra Fria, e da balbúrdia social do país. Oligarcas, nome dado a empresários monopolistas que antes ocupavam cargos na hierarquia comunista ou cresceram como empreendedores de um Estado mafioso, davam as cartas.

Putin foi atrás deles. O dono de TV Vladimir Gusinski perdeu seus canais e teve de fugir, Boris Berezovski acabou enforcado de forma suspeita no Reino Unido, Mikhail Khodorkovski perdeu sua petroleira, passou dez anos na cadeia e hoje mora em Londres. Nenhum era santo, o que facilitou o serviço.

E uma nova classe de oligarcas emergiu, boa parte dela "siloviki" como Putin. Como os czares, ele distribuiu o comando de setores da economia, crescentemente controlada pelo Kremlin, quando não presidências de estatais como a Rosneft (a Petrobras russa), chefiada pelo linha-dura Igor Setchin.

São essas pessoas que agora enfrentam as sanções aplicadas pelo Ocidente. Os russos comuns evidentemente as sentem, mas estão tolhidos. Greene, Mikhail e outros analistas tendem a concordar que no momento as elites estão amarradas a Putin, e o presidente busca subjugá-las.

Até aqui, nesses 22 anos de poder, o presidente jogou um jogo em que a cessão da economia a elas lhe garantia apoio político, que curiosamente precisava sempre da pátina de popularidade.

Com a guerra, isso acabou. Alguns oligarcas se manifestaram contra o conflito, e o Kremlin opera para edulcorar o relato da tragédia. Ainda assim, há espasmos intrigantes. Na edição de quarta (9) do "Noite com Vladimir Soloviev", um dos mais populares programas da TV estatal Rússia 1, tudo parecia familiar. O anfitrião enalteceu a guerra e instou os convidados, todos Kremlin de carteirinha, a se manifestarem.

Até que dois nomes usuais, o cineasta Karen Chakhnazarov e o acadêmico Semion Bagdasarov, resolveram questionar a "operação militar especial", como Putin quer que a guerra seja chamada. O primeiro disse que não conseguia imaginar Kiev sendo conquistada militarmente; o segundo falou um palavrão: "Isso é pior que o Afeganistão".

A ocupação de dez anos da nação asiática (1979-89) terminou em trauma nacional e ajudou a encerrar a União Soviética, em 1991. Soloviev, um apresentador tão chapa-branca que teve sua "villa" na Itália e outros bens congelados pelas sanções contra a guerra, interveio e tocou a discussão à frente.

O programa era ao vivo, o que levou à dúvida se aquilo era uma transgressão real de propagandistas de Putin ou se foi algo combinado previamente, para manter algo que sempre existiu: a ilusão de que o dissenso é permitido com limites a quem circunda o poder.

Até aqui, essa elite tinha uma interdependência com Putin e tirava sua força das ligações com o Ocidente, ora cortadas. Diz Greene que ela agora está à beira de virar "assalariada e dispensável" pelo líder, que tenderá a crescer seu jugo autoritário na hipótese de uma vitória militar aceitável na Ucrânia.

O próprio Chakhnazarov questionou isso, dizendo que aliados como a China e a Índia não irão tolerar o banho de sangue. Isso para não falar em amigos mais fracos, membros da União Econômica Eurasiana (Belarus, Armênia, Cazaquistão e Quirguistão), que tiveram uma depreciação média de 15% em suas moedas com a guerra. Entre eles, Putin aposta no trabalho de apoio condicional aos governos: todos enfrentaram convulsões ou guerras desde 2020, um prato cheio para teóricos da conspiração.

Como a resistência ucraniana é dura, mas parece insuficiente para derrotar a máquina de Putin, o desenho após uma eventual vitória é que importará: ocupação total ou parcial, fatiamento da Ucrânia ou uma acomodação que permita a todos cantar vitória, mas ao Kremlin obter o objetivo de tirar Kiev do Ocidente.

A opção da derrota, por sua vez, não deve gerar nada menos do que a implosão do acordo social da era Putin, custando assim sua cadeira ou coisa pior. Nomes para sucedê-lo são murmurados, desde o tecnocrático premiê Mikhail Michustin ao poderoso ministro Serguei Choigu (Defesa), para não falar em Setchin. Entre algum caos e uma ditadura eventual caminham os russos, meros 30 anos após deixarem a sombra da União Soviética. Poderá haver alternativas, mas elas parecem insondáveis agora.

Indicadores de democracia na Rússia

Liberdade de imprensa

150º entre 180 países; Brasil é o 111º

World Press Freedom, Repórteres Sem Fronteiras (2020)

Democracia

124º entre 167 países; Brasil é o 47º

Democracy Index, revista The Economist (2021)

Percepção da corrupção

136º entre 180 países; Brasil é o 96º

Transparência Internacional (2021)

Liberdade econômica

113º entre 177 países; Brasil é o 133º

Economic Freedom, Heritage Foundation com The Wall Street Journal (2022)

Liberdade

19 pontos de 100 possíveis, categoria 'não livre'; Brasil marca 73

Global Freedom, Freedom House (2021)

Liberdade na internet

30 pontos de 100 possíveis, categoria 'não livre'; Brasil marca 64

Internet Freedom, Freedom House (2021)

Democracia eleitoral

139º entre 179 países; Brasil é o 59º

V-DEM Institute (2021)