Guerra cria temor em geração de jovens alheia a tragédias
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segunda-feira, 21 de março de 2022
LUCAS ALONSO
SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) - Quando o presidente da Rússia, Vladimir Putin, determinou que suas tropas invadissem a Ucrânia, estava não apenas dando início à maior crise de segurança na Europa desde a Segunda Guerra Mundial, mas também provocando um impacto sem precedentes no imaginário de toda uma geração.
Quem nasceu nos anos 1990, por exemplo, chegou ao mundo em um período pós-Guerra Fria. Aqueles que são descritos como alguns dos maiores horrores da humanidade, como o Holocausto, eram acontecimentos, em geral, restritos a livros de história e obras de ficção que os recordam.
Relatos de dezenas de jovens e adultos dessa geração, colhidos pela Folha, mostram que os sentimentos mais recorrentes em relação à guerra na Ucrânia --que chega nesta segunda-feira (21) ao 25º dia-- estão diretamente relacionados a questões de saúde mental e bem-estar emocional.
Pavor, angústia, ansiedade, desesperança, incerteza, medo e tristeza foram as emoções mais comuns relatadas à reportagem por meio das redes sociais --plataformas pelas quais essa geração mais se informa sobre o conflito.
"É uma guerra na qual você tem o TikTok como ferramenta", diz Vera Iaconelli, psicanalista e colunista da Folha. "Há, de um lado, uma experiência inédita de acesso [à informação] via redes sociais e, de outro, uma população massacrada com a qual especificamente nos identificamos. Por isso essa sensibilização", afirma.
Iaconelli se refere a uma conjunção de fatores que fazem da guerra na Ucrânia um evento bélico que, no imaginário coletivo, se sobrepõe a outros conflitos que tendem a ser invisibilizados. Para ela, o "choque" dessa geração diante do cenário revela, antes de tudo, uma alienação fundamental, mas o fato de a maioria das vítimas ser branca e europeia acaba por forçar uma identificação maior mesmo em quem está a milhares de quilômetros de Kiev ou Moscou. Ao mesmo tempo, rumores sobre uma possível Terceira Guerra Mundial tornam o conflito um fator de preocupação que transcende fronteiras e representa uma ameaça à sobrevivência do ser humano enquanto espécie.
É o que conta o ferroviário Juan Pablo Neu Rogério, 31. De Curitiba, ele diz que vinha acompanhando as notícias sobre a tensão que crescia antes da ordem de Putin para a invasão da Ucrânia. Assustou-se quando o conflito escalou da retórica para as vias de fato e sentiu mais medo quando as tropas russas tomaram a região da usina de Tchernóbil, palco do maior acidente nuclear da história, em 1986.
"Foi um momento em que eu percebi que a escalada do conflito não daria um passo atrás", diz Rogério. "De repente, já estavam falando em abastecer a Ucrânia com armas, e a sensação que isso dava era de um agravamento inevitável. Uma sensação de não saber como as coisas vão se desenrolar", acrescenta.
O psiquiatra e psicanalista Mario Eduardo Costa Pereira, professor da Escola de Medicina da Unicamp, compara a reação à guerra na Ucrânia ao comportamento visto em resposta à pandemia de Covid.
"Esse tipo de cenário é muito contrário à nossa tendência emocional de fechar os olhos e tentar desprezar o que nos faz sofrer", explica o especialista.
O impacto geracional, ele diz, se dá também porque um conflito dessa magnitude vai de encontro à concepção civilizatória vigente e agora posta em xeque. "Depois da queda do Muro de Berlim, propôs-se uma solução definitiva do tipo 'o mundo será isso aí mesmo'. Saíram da pauta as grandes utopias e os grandes ideais de mudar o mundo."
A ideia de que a civilização estava protegida, para Pereira, já era passível de questionamentos diante da crise do coronavírus e da emergência das mudanças climáticas.
"A mesma coisa com a guerra, ela pode acabar com o mundo. Se um avião [russo] cruza a fronteira com a Polônia e joga uma bomba do outro lado, a gente não sabe se vai anoitecer hoje", diz.
A iminência de um desastre de proporções globais aliada às tragédias cotidianas no conflito que já matou milhares de civis e foi gatilho para uma crise migratória de milhões de refugiados são para Cecilia Decaris, 17, motivo de desconforto diário desde o início do conflito na Ucrânia.
Como parte de uma geração de nativos digitais, a estudante de publicidade enxerga nas redes sociais um aliado e um inimigo no contexto de guerra. A velocidade com que a informação circula permite que ela tenha acesso a quase tudo que acontece no Leste Europeu, mas também torna difícil controlar até que ponto é saudável mergulhar nos relatos.
Para Cecilia, a hora de parar foi quando viu a foto de uma família morta depois de um ataque russo em Irpin, no oeste da Ucrânia. Desde então, procurou diminuir o consumo de notícias sobre a guerra.
"A gente vê série, vê filme, lê livro. A gente sabe como foram as guerras na história. Mas quando vejo isso acontecendo na vida real, no agora, me sinto apavorada de uma forma que eu não imaginava ser possível fora da ficção", diz.
A guerra, assim como a pandemia, é o tipo de situação que faz cair a ficha sobre a finitude humana, diz Iaconelli. "Na verdade, não conseguimos imaginar nossa própria morte. Então há disparadores que fazem com que a gente tenha acesso ao fato de que vamos morrer, mas sem que a gente consiga imaginar o que exatamente seria isso."
Para a psicanalista, porém, pode se repetir agora um tipo de adormecimento dos sentidos mesmo diante do conflito ainda em andamento, à semelhança de uma espécie de naturalização da morte das vítimas da Covid. "O que vai acontecendo é que a vida tem que continuar, e as pessoas continuam suas vidas e vão se dessensibilizando para poder sobreviver."