SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) - "Sim, pode vir pegar: o corpo da sua avó acordou", diz um funcionário do Instituto Médico Legal, o IML, à protagonista de "Lázaro". No conto, como nos demais que compõem "Gótico Nordestino", livro recém-lançado pelo paraibano Cristhiano Aguiar, as trevas são tão íntimas quanto sociais. E é daí que nasce a sua potência, afirma o escritor.

"A gente está vivendo um momento de crise, mas o processo de formação social do Brasil é violento, o que cria seus fantasmas", diz ele. "É por isso que 'Gótico Nordestino' se passa em diferentes tempos da história."

Aguiar é um dos nomes que têm renovado a tradição secular do insólito literário brasileiro --termo que abarca gêneros que flertam com o sobrenatural, como horror, fantasia, ficção científica--, com uma influência particular do gótico. Junto a ele, estão escritores como Paula Febbe, Ana Paula Maia, Bruno Ribeiro, Santiago Nazarian, Márcio Benjamin e Irka Barrios.

É uma etapa que sucede uma tendência que galgou seus primeiros passos no resto da América Latina. Nos últimos anos, Mariana Enríquez, Samantha Schweblin, Silvia Moreno-Garcia e Giovanna Rivero também têm aterrorizado cada vez mais leitores.

As aparições fantasmagóricas que vagueiam por essa região, aliás --ditaduras, desigualdades, colonizações--, são um elemento em comum no trabalho de todos esses autores. "Eles atualizam as estratégias narrativas do gótico ao incorporar as instabilidades e os medos de sociedades", afirma o escritor Oscar Nestarez, que pesquisa o tema em um doutorado na Universidade de São Paulo, a USP.

Aguiar, por exemplo, relata ter metabolizado a chegada de Jair Bolsonaro ao Planalto no conto "Firestarter", em que uma série de combustões espontâneas se espalha pelo país e são registrados em um aplicativo. A história é inspirada na série de ficção científica "Black Mirror".

Verena Cavalcante, autora de "Inventário de Predadores Domésticos", diz algo semelhante ao que aborda Nestarez. Segundo ela, o gênero oferece catarse e refúgio às assombrações do cotidiano. E o Brasil de hoje, em crise política, econômica e sanitária, é uma série de terror por definição, "com duas temporadas e contrato renovado para uma terceira", completa. "O gótico perdura ao longo dos séculos por acessar partes ocultas dentro de nós."

Mas, afinal, o que é o gótico? Nestarez afirma que o termo, por ser elástico, é difícil de ser definido. Mas há duas maneiras de vê-lo.

A primeira é como um fenômeno cultural, histórico e artístico do século 18. "O Castelo de Otranto", livro do britânico Horace Walpole de 1764, inaugurou o gótico literário. Na era da razão e da ciência emplacada pelo Iluminismo, o enredo medieval trazia esqueletos voltando à vida e castelos assombrados. O sucesso do livro na Europa abriu caminho para autores como Ann Radcliffe e Matthew Gregory Lewis.

A outra maneira é como uma linguagem poética. Ela tem três itens fundamentais: o "locus horribilis" --um espaço assombrado--, vilões monstruosos e a representação alegórica do passado pelo sobrenatural. Outras características importantes são o exagero e a proposta do exame de consciência, como Mary Shelley fez em "Frankenstein", ao questionar os limites éticos e morais da ciência.

No século 19, a forma enfraqueceu. Mas influenciou gigantes, como as irmãs Brontë, Charles Dickens, Edgar Allan Poe, Bram Stoker e a própria Shelley.

No Brasil, os expoentes do gênero são dois grandes nomes do romantismo --Álvares de Azevedo, autor de "Noite na Taverna", de 1855, e Fagundes Varela.

A literatura de cordel nordestina também alimentou o imaginário mitológico e fantástico que permeia ramificações do gótico por aqui. Graciliano Ramos e Euclides da Cunha experimentaram com ele, enquanto R. F. Lucchetti, hoje autor de mais de 1.500 títulos, se tornou um dos mais respeitados do meio. A produção de Lucchetti, entretanto, passou ao largo das grandes editoras, crítica especializada e academia.

Essa inspiração em culturas regionais é um elemento compartilhado com os escritores brasileiros contemporâneos que flertam com o gótico, aliás. É o caso de Aguiar, que buscou referências em romancistas brasileiros dos anos 1930, como Jorge Amado, José Lins do Rego e Rachel de Queiroz.

Nestarez lembra que o potiguar Márcio Benjamin, por exemplo, traz a marca da tradicional oralidade do Rio Grande do Norte, enquanto autores sulistas flertam com o paganismo do "folk horror".

Já o "Gótico Nordestino" de Aguiar traz no título dois símbolos fortes e aparentemente díspares --assim desafiando nossas expectativas em torno do que são o gótico e o Nordeste. O autor explora vertentes da ficção especulativa, que designa narrativas que escapam à nossa realidade, em histórias ambientadas na região.

"Eu não imaginava que, para muita gente do Sudeste, uma proposta como a minha é inconcebível, então tem essa provocação consciente", diz.

Outra recorrência observada entre esses autores é a migração de editoras independentes --pioneiras desse movimento-- às de maior porte. É o caso do próprio Aguiar, cujo livro é editado pela Alfaguara, selo da Companhia das Letras. E de Cavalcante e Benjamin, que assinaram com a DarkSide, especializada em terror.

"É um sopro de energia muito interessante", diz Nestarez. "Vários autores que cresceram na década de 1980, um período muito rico para o horror, viram bastante coisa e quiseram escrever também."

De fato, quando esses autores chegaram à maioridade, vários movimentos de valorização do terror como um todo se sobrepuseram. O meio acadêmico, nos anos 2000, passou a acolher mais os estudos do gênero. Em paralelo, houve o crescimento do cinema nacional nessa linha. "Encarnação do Demônio", o último filme de José Mojica Marins, o Zé do Caixão, chegou aos cinemas, e Rodrigo Aragão estreou com "Mangue Negro".

Nos últimos anos, outros marcos têm acontecido. O projeto multimídia "O Recife Assombrado" coleta mitos sobrenaturais da capital pernambucana --não muito diferente do que Gilberto Freyre fez em "Assombrações do Recife Velho". Em 2017, foi fundada a Associação Brasileira dos Escritores de Romance Policial, Suspense e Terror. O romance de zumbis "Corpos Secos" venceu o Jabuti de entretenimento. Nestarez e Júlio França, professor de letras da Uerj, fundaram a biblioteca digital "Tênebra", em que textos medonhos e fantásticos estão disponíveis gratuitamente.

"É o começo de uma era que eu não chamo 'de ouro', porque não sei como será o dia de amanhã", pondera Nestarez. "Ela talvez chegue quando as grandes editoras olharem para os autores brasileiros como olham para os internacionais."