FOLHAPRESS - Nas primeiras páginas da HQ "Risca Faca", um personagem demonstra receio de passar pelo centro da cidade à noite. É sujo, perigoso, os prédios todos pichados. Diz que os moradores de rua deveriam ser expulsos. "Só servem para aporrinhar."

O personagem higienista, porém, logo sai de cena para não voltar mais. Sua partida é a deixa para que a história comece. É como se o quadrinista André Kitagawa recolhesse as cortinas e revelasse o fascinante mundo urbano que decidiu retratar.

"Risca Faca" reúne três histórias ambientadas em ruas que nem todos querem conhecer. São narrativas sobre pessoas escanteadas pela sociedade, gente que rói osso para sobreviver. Mesmo que funcionem sozinhos, os capítulos estão interligados.

A HQ foi uma das contempladas em 2019 pelo Programa de Ação Cultural, o Proac, por meio do qual o estado de São Paulo financia projetos artísticos. É o primeiro livro da editora Monstra, um braço da loja de mesmo nome.

"Risca Faca" é a aposta acertada para a monstruosa estreia. Seu anúncio empolgou o público que acompanha a cena nacional. Um indício desse frisson são alguns dos artistas que escreveram textos elogiosos na edição --Lourenço Mutarelli, de "O Cheiro do Ralo"; Marcelo D'Salete, de "Angola Janga"; Marcello Quintanilha, de "Tungstênio".

Uma das razões para a empolgação é o nome de Kitagawa. O autor é um dos grandes expoentes de uma geração autoral de quadrinistas brasileiros. Ele mostrou suas histórias em diversas publicações, como a Front.

Em 2000, venceu o Salão Internacional de Piracicaba, em São Paulo. Em 2003, ganhou o troféu HQ Mix na categoria artista revelação. Em 2006, publicou "Chapa Quente", uma coletânea de histórias curtas. O texto foi parar no teatro, em uma parceria com o diretor Mário Bortolotto --que f ez o posfácio de "Risca Faca".

Desde então, porém, Kitagawa andava sumido das estantes dos quadrinhos. Ainda trabalhava, produzindo coisas como cartazes para peças de teatro e dirigindo espetáculos. Mas não tinha publicado outra graphic novel. "Chapa Quente" era a sua primeira e última, em 15 anos.

"Risca Faca" é, assim, seu retorno triunfante. Um triunfo, em primeiro lugar, da técnica. Os desenhos em preto e branco impressionam pela profundidade e pela riqueza de detalhes, com um ar esfumaçado, sombrio. Kitagawa desenhou com grafites de diferentes formas e dureza --entre elas lápis, lapiseira e grafite em pó, que espalhou com o dedo. Usou borracha para efeitos de luz, complementando o traço. Finalizou no computador, separando e tratando cada camada.

O gibi é também um triunfo da narrativa. Kitagawa criou personagens que doem no leitor e cativam. Gente com apelidos como Ryta dos Patins, Nescau, Chokito, Zoinha e Jamorreu. Eles vivem histórias esparsas, separadas, que acabam se cruzando em lugares como o Convento das Potrancas --uma espécie de inferninho no centro de uma cidade caótica, perigosa e apaixonante.

No primeiro capítulo, o leitor segue a tortuosa história de Ryta dos Patins, uma mulher envelhecida que aparentemente sente saudades de seus sucessos passados, quando posava para revistas eróticas. No segundo, um grupo de mulheres se infiltra em uma festa na casa de um empresário envolvido em falcatruas. No terceiro, um funcionário do tal inferninho cogita pular da janela. Mas esse e qualquer resumo do enredo de "Risca Faca" parece fadado a deixar quase tudo o que importa de fora. A delícia do roteiro é a sua imprevisibilidade, sua qualidade amorfa.

"Risca Faca" é marcado pelo absurdo, por inesperadas guinadas, dessas que só se entende lendo. Um homem que pede para o motorista do ônibus perseguir um táxi. Um boi que subitamente invade um bar e interrompe uma tentativa de assédio. Uma mulher vingativa com um tapa-olho. É a vida no centro de uma cidade grande, testemunhada nas ruas de que alguns querem desviar.

RISCA FACA

Autor: André Kitagawa

Editora: Monstra

Quanto: R$ 49,90 (120 págs.)

Avaliação: ótimo