Eu me senti rebatizado depois de fazer um transplante de fígado, diz Gero Fasano
PUBLICAÇÃO
quinta-feira, 20 de maio de 2021
NAIEF HADDAD
SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) - Assim que acordou da anestesia depois do transplante de fígado, em outubro do ano passado, o empresário perguntou ao seu cirurgião, Ben-Hur Ferraz Neto, que estava ao lado. "Ben, tô vivo?". O médico respondeu: "Gero, não só tá vivo, como tá ótimo".
Naquele instante, ele decidiu finalmente abandonar oficialmente seu nome, como cogitava havia anos. Rogério Marco Fasano ficava para trás, junto com o fígado extraído. Surgia Gero Fasano, como consta na nova certidão.
Esse foi um dos capítulos recentes de um processo iniciado em outubro de 2018, quando ele recebeu o diagnóstico de cirrose hepática, resultado de quatro décadas com uma rotina diária de até três garrafas de vinho. A cirrose deu origem a um câncer de fígado, e a entrada na fila do transplante tornou-se inevitável.
Em sua primeira entrevista sob o novo nome, Gero Fasano, 59, conta que ficou afastado por cerca de um ano e meio e está retomando o trabalho efetivamente nesta semana.
O homem à frente de 24 casas (restaurantes e bares) e sete hotéis no Brasil e no Uruguai também fala à reportagem sobre os efeitos das restrições impostas durante a pandemia.
Houve impacto em seus negócios --fechamento do restaurante de Brasília e de um bar e um quiosque no Rio. Mas o grupo, diz o empresário, "vai ficar de pé e tem muitos planos". Abre nos próximos meses um restaurante e um projeto residencial em Nova York.
*
Pergunta - O que causou a cirrose?
Gero Fasano - Alguns fatores foram gotas d'água, e certamente o estilo de vida pesou. Abri meu primeiro restaurante com 18 anos; são, então, 40 anos de noite, dormindo às 4h, 5h. Nunca bebi durante o dia, sempre trabalhei muito. Só que depois das 19h30, eu começava a tomar vinho e, como sempre tive resistência gigantesca, raramente ficava bêbado. Ia até 4h, sem limite. Quando eu via, eram três garrafas todo dia, e meu fígado começou a dizer: "Estou cansado".
Numa noite, fui entrevistar o [chef] Erick Jacquin para o Corriere Fasano [publicação do grupo], nem abusei muito. Acordei enjoado, fui ao banheiro e vi que estava cheio de sangue. Graças a Deus, consegui estancar e preservar um percentual do fígado.
Vieram problemas, como a encefalopatia [complicação da doença que afeta funções cerebrais]. Te deixa atordoado. Eu atravessei a Park Avenue, em Nova York, sem olhar para os lados. Os caras brecavam à minha volta e não sabia que era eu quem estava causando aquilo. Você não consegue andar em linha reta, cai no chão. É muito degradante.
Como foi a decisão pelo transplante?
GF - Ela não é muito sua, é mais do médico. Boa parte das pessoas com cirrose hepática desenvolve câncer. Qual é o grande problema? Depois de um determinado tamanho do câncer, o SUS te tira da lista [porque torna-se pequena a chance de o transplante ser bem-sucedido]. É uma guerra contra o tempo infernal.
Não chegava a minha vez na lista e o câncer crescia. [Se a cirurgia tivesse demorado] Mais um mês, o câncer estaria com um tamanho que eu seria sacado da lista. Nesse caso, eu teria que tratar o câncer novamente para que diminuísse e só assim voltar à lista.
Quanto tempo se passou do momento em que entrou na lista do transplante à cirurgia?
GF - Um ano e pouco. Na lista, eu tinha a posição 26 em um determinado momento e acordava na 36. Depois mudava para 22. Isso acontece porque tem gente que entra na fila em condições piores.
Fui chamado duas vezes ao hospital, mas o fígado era de um doador que tinha Covid. Na terceira vez, houve cancelamento da doação.
Só foi operado, então, na quarta vez que foi chamado ao hospital?
GF - Sim. Segundo o Ben-Hur [Ferraz Neto, cirurgião que comandou a equipe responsável pelo transplante], ele colocou um motor de BMW numa velha Fiat [risos].
Qual avaliação faz da fila do transplante?
GF - É uma das coisas mais corretas que eu já vi, uma correção ímpar. Mas é também a situação de maior aflição que já vivi.
Ao longo do processo, quantos quilos perdeu?
GF - Estou com 74 kg. Ao todo, perdi uns 25 kg. Mas houve uma época que eu estava bem gordinho, uns 15 kg acima do que sempre fui.
Como se sente hoje?
GF - Muito bem. Volto agora ao trabalho depois de um ano e meio, com saúde, fazendo esportes. E acontecem coisas engraçadas. Minha voz, por exemplo, mudou, fiquei com um vozeirão. E o cabelo está mais preto e mais duro. Mudou a textura.
Parou de beber completamente?
GF - Estou autorizado a beber um vinho aqui e acolá, tenho bebido bem pouco. Meus hábitos mudaram muito. David Bowie [1947-2016], um dos meus heróis, tem uma frase que escrevi no espelho do meu banheiro. Perguntaram o que havia mudado depois dos 60 anos, e ele respondeu: "I found out morning does exist" [Descobri que a manhã existe]. Hoje, amo acordar cedo.
O senhor fez campanha pela doação de órgãos em novembro de 2020, um mês depois da cirurgia. Como foi?
GF - Foram anúncios nos grandes jornais e nas principais revistas. Como escrevi no anúncio, é muito tocante que os familiares optem pela doação no pior momento da vida deles.
Eu estou aqui porque alguém quis --nunca saberei quem é. Falo, com emoção, que eu penso nele em todos os cuidados que tomo hoje.
Decidiu mudar seu nome depois do transplante, é isso mesmo?
GF - Sou o único da minha família com nome brasileiro. Meu pai queria Ruggero, nome do meu avô, mas minha mãe estava cansada de tantos nomes italianos e decidiu que seria Rogério. Nunca gostei do nome, confesso.
Aí meu pai fez a confusão final. Disse que precisava ter um nome italiano no meio e meteu Marco. Ficou, então, Rogério Marco Fasano.
Por sorte do destino, desde os seis anos, meu apelido é Gero. A maior parte dos meus amigos me trata dessa forma. Já queria ter feito essa mudança de nome antes, mas, pra evitar trabalho, acabei deixando de lado.
Saindo da mesa de operação e indo para o centro de tratamento intensivo [do hospital Copa Star, no Rio], acordei da anestesia. De um lado, estava o Ben-Hur e, do outro, Ana, a minha esposa. Olhei para ele e perguntei: "Ben, tô vivo?". Ele respondeu: "Gero, não só tá vivo, como tá ótimo". A cirurgia [com seis horas de duração] havia sido um sucesso.
Não falei nada na hora, mas pensei: você me rebatizou. Naquele momento, me senti rebatizado, e o Rogério ficou com o fígado velho. Depois de deixar o hospital, falei com meu advogado e, 15 dias depois, tinha nova certidão.
Além disso, percebi que o meu nome nos EUA é impronunciável. "Rorrélio" ninguém merece [risos].
Como o grupo tem lidado com as medidas de fechamento na pandemia?
GF - O grupo vai ficar de pé e tem muitos planos. Temos um sócio muito forte, a [empresa do setor imobiliário] JHSF, que esteve firme ao nosso lado. Sobrando os dedos, a gente vai atrás do resto.
O que me deixa chateado é o seguinte: as medidas radicais, como os lockdowns, que o mundo inteiro fez, têm que acontecer mesmo, mas que venham com ajuda dos órgãos de governo, como benefícios fiscais. Não dá para um restaurante fechado pagar IPTU, não é justo.
Quais são esses planos?
GF - Vamos inaugurar em junho o Fasano Club Residence Hotel na Quinta Avenida, em Nova York, em frente ao Central Park. É um prédio de 16 apartamentos, pequeno e acolhedor, um projeto do [arquiteto francês] Thierry Despont.
E o meu grande desafio é o restaurante Fasano, também em Nova York, na Park Avenue com a rua 49, onde era o restaurante Four Seasons. É um projeto do Isay [Weinfeld]; aliás, trabalhar com ele é sempre um prazer. Abre no meio de setembro .
E depois de Nova York?
GF - Vou me dedicar a Nova York como no começo da carreira, como um cachorro, trabalhando todo dia, das 11h às 23h, indo de mesa em mesa.
Depois, tenho um grande sonho, que é morar na Itália. Manter uma residência lá e viajar para acompanhar as operações nos outros países.

