SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) - "Vamos falar do câncer?" Durante uma longa e divertida entrevista, Erasmo Carlos puxou o assunto. Entre discussões sobre o impressionante legado de canções populares compostas em seus 80 anos de vida, comemorados neste sábado (5), ele também se alegra com a recuperação.

"Meu segundo câncer", ele explica. O primeiro, na garganta, foi há 20 anos. Agora, fez um exame para investigar cálculo renal e apareceu um tumor no fígado, em estado avançado. "Tive a felicidade de me deparar com uma técnica nova de cirurgia, que não é invasiva. Não corta você e retira o tumor. Você é espetado por uma agulha elétrica e o processo queima o tumor."

A intervenção, chamada ablação, não chegou a eliminar todo o tumor, mas, após repetir o procedimento, ele foi totalmente dizimado. Há um ano com alta, Erasmo passa por ressonância para acompanhar a recuperação. "Fui mudando minha vida, hoje eu sou bem diferente do que era. Eu não bebo, não fumo. Acho que é por isso que estou tão lúcido", diz, rindo.

Tão lúcido que se revolta acompanhando a CPI da Covid. "É um circo. É inacreditável, eu não sei como tem gente tão sem noção. Fico bestificado de ver tanta desinformação. A cada dia sou surpreendido por mais blablablá, isso me deixa muito triste." A pandemia afetou bastante os dias do Tremendão.

"Há um ano e quatro meses eu e minha mulher estamos dentro de casa. A gente não sai, não vai a lugar nenhum. Cumpri bem todas as regras. A gente foi se adaptando, sentindo falta de algumas coisas. Estava com um trabalho novo pronto para gravar, chamado 'O Futuro Pertence à Jovem Guarda'. É uma frase do Lênin, dela é que foi tirado o nome Jovem Guarda, pelo Carlito Maia."

Pronto para entrar em estúdio e já com datas marcadas de shows no Rio e em São Paulo para lançar o disco, Erasmo adiou o projeto. E teve tempo para outras atividades. "Comecei a fazer playlist. Meu novo xodó é isso. Com as músicas que eu mais gosto na minha vida inteira. Tem mais de 700. Passei a ver mais séries de televisão, muita notícia e futebol, quando dá. Fiquei mais caseiro. Desenvolvi comidinhas, umas experimentações gastronômicas."

Mas o compositor voltou. Escreveu uma canção com Emicida, para o novo álbum da cantora Alaíde Costa, e está compondo com Supla. "Ele e o João Suplicy fizeram uma música em que eu estou colocando letra. Estou muito contente com esse trabalho, a música é boa pra caramba."

Erasmo sente saudade do estúdio e das turnês. "Eu adoro compor, mas estou doido para ir ao estúdio. Discutir com os músicos, fazer arranjos, se não gostar fazer de novo. E ali já fico pensando na estrada." Ao falar sobre turnês, a lembrança imediata nem é estar no palco. "Na estrada é maravilhoso! A convivência com a banda, conhecer outros lugares, outras pessoas. Tem a churrascaria na beira da estrada, queijo coalho, caldo de cana, pastel, essas maravilhas."

Ao olhar para os mais de 60 anos de carreira, admite não gostar de todos os álbuns que gravou. "Não me lembro dos nomes, mas na época da Jovem Guarda tem uns dois discos que eu não gosto. Talvez tenha mais uns três que fiz depois e também não curto. Às vezes pode ter músicas boas, mas eu estava em um momento não agradável da minha vida."

Erasmo cita dois álbuns fundamentais em sua carreira, incensados pelos fãs. "Todo mundo gosta do 'Carlos, Erasmo...', de 1971. Eu já gosto mais do 'Erasmo Carlos e os Tremendões', meu disco do ano anterior. Minhas necessidades interiores de mudança estavam claras ali, quando gravei 'Saudosismo', do Caetano, 'Teletema', do Antonio Adolfo. Gravei também 'Sentado à Beira do Caminho' e 'Coqueiro Verde' nesse disco. Outro que adoro é 'Erasmo Carlos Convida', que eu considero o disco no qual eu fui para a faculdade. Depois do bê-a-bá da Jovem Guarda, só então fui para a faculdade."

Ele se refere a um álbum que foi pioneiro, feito num formato depois adotado por muitos grandes nomes, que é o disco de duetos. "Em 1980, a ideia foi de um produtor que trabalhava comigo, o Guti, irmão do Mu e do Dadi, que eram então da Cor do Som. Pensei em uma coisa maluca, para fazer bem ao meu ego. Só músicas de Roberto e Erasmo, convidando os maiores para gravar. Quis imortalizar nossas canções. E deu certo."

A lista de convidados impressiona. Entre outros, cantam com ele Roberto (claro), Gal Costa, Tim Maia, Rita Lee, Gilberto Gil, Caetano Veloso, Maria Bethânia e Nara Leão. Em 2007, lançou "Erasmo Convida, Volume 2", com Chico Buarque, Marisa Monte, Los Hermanos, Milton Nascimento, Djavan e mais amigos.

"No primeiro disco, eu perdi a chance com a Elis Regina. No segundo, tentei o João Gilberto. Fiquei feito um louco atrás dele. Eu e minha equipe não conseguimos. Mas eu convidei uma nata."

Erasmo gosta de colaborações, e fez muitas parcerias em projetos de artistas mais jovens. "Eu me sinto bem. Quando surgi, eu ensinei. Agora, aprendo com eles. Mas não é com todos os jovens, tem alguns que eu desaprendo se fizer algo em parceria", afirma com uma risada solta. "Mas é sempre moçada boa que aparece na minha vida. São os jovens que mudam as coisas."

Ser reconhecido em todos os lugares, por gente de todas as gerações, é um prazer. "Eu gosto. Sou um cara sempre atuante, isso é importante, sempre estou fazendo alguma coisa, Se um jovem gostar do trabalho atual, ele vai atrás do que eu já fiz. Posso ganhar um novo fã, que assume o antigo como se fosse novo. Assim acho que tenho conseguido renovar meu público. Eu estou sempre aí, todos têm que me aturar."

O grande número de canções que ele criou, seja sozinho, com o camarada fiel Roberto Carlos ou outros parceiros, é um grande legado, que deverá perdurar por décadas. Erasmo concorda. "Tenho consciência disso, porque escuto as pessoas dizendo o que as minhas músicas representam para elas, como foram importantes. Sem exagero, já salvei pessoas em momentos críticos, coisas assim. A internet ajuda muito os contatos, então tenho consciência desse legado."

Erasmo separa sua figura pessoal e suas músicas. "Eu me sinto realizado. Porque eu não faço questão que as pessoas se lembrem de mim, mas sim das minhas músicas. Eu levo muito a sério minha profissão. Não o cantor, mas o compositor, que é o que eu sou mesmo. Eu sou honesto com a minha profissão, não minto, não entro em maracutaia, não entro em panela. Sou muito fiel aos meus princípios, e tudo isso contribui, bicho!"

Em 2007, ele contou histórias engraçadas vividas por ele e amigos no livro "Minha Fama de Mau". O volume serviu para alimentar o roteiro do filme de mesmo nome, lançado em 2019, com Chay Suede no papel de Erasmo. "Um filme sempre tem licença poética. Tem muita fantasia, muita água com açúcar. A intenção do Lui Farias foi fazer um filme leve, que representasse o período da Jovem Guarda, não era seguir a minha vida. Não tem as desgraças que me aconteceram, não tinha isso no livro também. Se fosse escrever, seria sofrer novamente. Só falei de coisas boas."

Ao completar 80 anos, ele diz que seus erros e acertos moldaram sua pessoa. "Eu amo o homem que eu sou hoje, bicho. Tenho boa fé, sem inveja das pessoas, tenho um amor grande para distribuir às pessoas, tenho minha profissão honesta, digna. E fico bestificado com quem não é assim, essa gente corrupta que governa. Não admito alguém usar uma pandemia em proveito próprio."

Encerrando a conversa, ele mistura tristeza e esperança. "Tinha tudo para ser superfeliz, mas por dentro não sou totalmente feliz por causa dessa corja. Estou decepcionado com egoísmo, preconceito, intolerância. Mas eu continuo acreditando no ser humano, acredito na utopia, nos meus sonhos. A utopia é impossível, mas é sonhável."