BRASÍLIA, DF (FOLHAPRESS) - Associações de médicos, pacientes e técnicos que atuam na avaliação de tecnologias de saúde tentam evitar o aparelhamento da Conitec (Comissão Nacional de Incorporação de Tecnologias no SUS) pela ala do governo que defende o uso de medicamentos sem eficácia para a Covid-19, como a hidroxicloroquina.

A mobilização é para evitar a demissão de Vania Canuto do comando do colegiado que elabora pareceres sobre a incorporação de novos tratamentos ao SUS (Sistema Único de Saúde). Como mostrou o jornal Folha de S.Paulo, a ala pró-kit Covid do governo quer emplacar no cargo o biólogo Regis Bruni Andriolo, que é defensor do chamado tratamento precoce.

O pedido de demissão de Canuto e a indicação de substituto foram feitos por Hélio Angotti, secretário de Ciência e Tecnologia do Ministério da Saúde, depois de a servidora votar na Conitec a favor de parecer que contraindica o uso dos medicamentos sem eficácia para a Covid.

A exoneração é apontada como provável, mas a nomeação de Andriolo perdeu força, dizem integrantes do governo. A falta de definição sobre o substituto no cargo arrasta a saída de Canuto, que foi encaminhada por Angotti no fim de 2021.

Além disso, o ministro da Saúde, Marcelo Queiroga, quer evitar o desgaste de assinar a demissão da servidora e tenta convencê-la a pedir a saída do cargo, o que não deve ocorrer, ainda de acordo com autoridades que acompanham as discussões.

Canuto é a atual diretora do DGITIS (Departamento de Gestão e Incorporação de Tecnologias e Inovações em Saúde), função que comanda a Conitec.

O movimento ocorre no momento em que o ministério trava a publicação de pareceres que contraindicam o uso de medicamentos sem eficácia para a Covid.

Esses textos foram aprovados em junho e dezembro de 2021 pela Conitec, mas a publicação das diretrizes está sendo postergada pela Secretaria de Ciência e Tecnologia da pasta, comandada por Angotti, para evitar uma mancha às bandeiras negacionistas do governo Jair Bolsonaro (PL).

O Ministério da Saúde foi procurado para comentar o assunto, mas não se pronunciou até a conclusão deste texto.

Depois da notícia sobre a eventual troca na Conitec, entidades se posicionaram contra o que chamam de politização da Conitec.

A Frente Pela Vida, grupo representado pela Abrasco (Associação Brasileira de Saúde Coletiva) e mais oito entidades, divulgou uma nota em defesa da Conitec. Segundo o documento, a comissão tem sido moralmente assediada por autoridades políticas, inclusive dirigentes do próprio Ministério da Saúde.

"Nos últimos dias, cresce a apreensão de toda a comunidade científica, em especial, da área da saúde, com a possibilidade de assumir a coordenação da Conitec pessoas sem a devida qualificação profissional. Se isso ocorrer, corre-se o risco de a Conitec passar a incorporar produtos e procedimentos sem critério técnico-científico, mas sim com base em crenças e ideologias políticas", afirmou a nota.

Outros 19 membros do Nats (Núcleo de Avaliação de Tecnologias), entre eles integrantes do Instituto Nacional de Cardiologia e da Faculdade de Medicina da USP, defenderam a atuação da atual coordenadora da Conitec e classificaram como ameaça a mudança no órgão.

Os técnicos desses núcleos trabalham na análise de novas tecnologias de saúde e nas discussões da Conitec.

O grupo destacou que atua junto ao DGITIS para atender às demandas e atividades da Conitec, que realiza um trabalho norteado em critérios técnicos.

"Esperamos que os interesses do SUS sejam preservados dessa ameaça iminente, que as competências técnicas sejam resguardadas e sobreponham qualquer interesse político", afirmou a nota.

As associações Ame (Amigos Múltiplos pela Esclerose) e CDD (Crônicos do Dia a Dia) criaram um abaixo-assinado chamado "Em Defesa da Avaliação de Tecnologias em Saúde" para evitar a politização na incorporação de medicamentos no SUS.

A diretriz sobre tratamento hospitalar foi aprovada em junho na Conitec. Já o parecer sobre o manejo ambulatorial, ou seja, de casos leves, foi aceito em dezembro, após impasse e tentativa do governo de implodir o debate.

Em dezembro, a votação que rejeitou o kit Covid teve placar apertado, de 7 a 6. O placar poderia se inverter com a retirada de Canuto e nomeação de nome alinhado ao governo.

Outro caminho seria rejeitar o parecer da Conitec. A primeira decisão desse tipo pode ser tomada por Angotti. Neste caso, se houver recurso, a decisão final é do ministro Queiroga.

O biólogo Andriolo é próximo da secretária do Ministério da Saúde Mayra Pinheiro, conhecida como "capitã cloroquina", e de Angotti. Em maio de 2021, ajudou Pinheiro a se preparar para a CPI da Covid.

Em um vídeo a que a Folha de S.Paulo teve acesso, ela pede a Andriolo que prepare algumas perguntas para que ela possa enviar para os senadores fazerem para ela.

Pinheiro perguntou ao pesquisador se havia estudo que serviria de "bala de prata" para provar à CPI a eficácia da hidroxicloroquina e da ivermectina.

Em resposta, no vídeo, Andriolo respondeu: "Pois é. Cadê o estudo precoce, né? Esse é o problema. Não tem. Então, não tem esse estudo".

Andriolo, Pinheiro e Angotti participaram da conversa que antecedeu a ida da secretária à CPI. Na mesma ocasião, ela sugeriu que poderia arrumar um cargo para o biólogo na Saúde, mesmo ele não tendo sinalizado se tinha ou não interesse em trabalhar na pasta.

As manobras podem ter efeito limitado, dizem integrantes do governo, pois o ministro Ricardo Lewandowski, do STF (Supremo Tribunal Federal), deu até o fim de janeiro para o Ministério da Saúde apresentar diretriz e protocolo de tratamento da Covid, em ação apresentada pelo MDB.

Além de postergar a publicação das diretrizes, Angotti acionou a CEP (Comissão de Ética Pública), órgão ligado à Presidência da República, para investigar parecer aprovado no colegiado.

Ao assumir o Ministério da Saúde, em março de 2020, Queiroga anunciou que promoveria o debate na Conitec para encerrar a discussão sobre o uso do kit Covid. Ele indicou o médico e professor da USP Carlos Carvalho, contrário aos fármacos ineficazes, para organizar grupo que iria elaborar os pareceres.

Queiroga, porém, modulou o discurso e tem investido na pauta bolsonarista para se agarrar ao cargo. Ele passou a evitar o tema do kit Covid, ainda que admita a colegas que não vê benefícios no uso destes medicamentos.