SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) - Na sua biografia, Caetano Veloso usa a expressão tratamento de choque para descrever como se sentiu ao descobrir, no final dos anos 1960, o "Manifesto da Poesia Pau-Brasil" e o "Manifesto Antropófago".

O cantor baiano havia entrado em contato com os textos de Oswald de Andrade na mesma época em que viu a encenação de "O Rei da Vela", peça do autor modernista desenterrada do ostracismo pelo Teatro Oficina mais de três décadas após ser escrita.

Mas não era só na música e no teatro daqueles primeiros anos de ditadura que a influência de Oswald, um dos mentores da Semana de Arte Moderna de 1922, que agora faz cem anos, seria sentida. Sua escrita rápida e bem-humorada, assim como seus poemas que colocavam ao lado da palavra desenhos e elementos visuais, foram grandes inspiradores da poesia concreta dos irmãos Augusto e Haroldo de Campos. Ou seja, as vanguardas artísticas da década de 1960 reviveram com entusiasmo conceitos lançados pelo modernismo.

Oswald legou para a cultura brasileira a ideia de que era possível absorver e aproveitar elementos culturais estrangeiros de forma proveitosa, o que chamou de antropofagia, para criar a partir daí novos produtos culturais, com cor local. Basta pensar na incorporação da guitarra elétrica pelos músicos do período --o instrumento típico do rock americano e inglês se fazia presente, por exemplo, nas faixas do disco-manifesto "Tropicália ou Panis et Circensis", de 1968.

"Do ponto de vista das obras de arte, talvez os músicos do tropicalismo tenham realizado mais radicalmente a proposta antropofágica do que os modernistas. A ideia da devoração de tudo aquilo que em princípio nos seria alheio ou estrangeiro para poder enriquecer nossa própria arte. É uma postura de abertura cosmopolita, de que não se trata de insistir no sentimento de brasilidade pelo fechamento a tudo que seria diferente do nacional", afirma Pedro Andrade, professor da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro com livros e ensaios publicados sobre o modernismo.

Para Andrade, foi a dimensão do humor e da ironia na obra de Oswald que conquistou os tropicalistas, e desta forma o autor acabou sendo preferido pela tropicália em relação a Mário de Andrade, figura mais proeminente na Semana de Arte Moderna de 1922, porém com uma obra mais analítica. A presença das ideias de Oswald era tão forte no fim da década de 1960, lembra o professor, que uma frase do seu "Manifesto Antropófago", "a alegria é a prova dos nove", foi usada na letra da música "Geleia Geral", de Gilberto Gil e Torquato Neto.

Um dos principais responsáveis por difundir a palavra de Oswald foi José Celso Martinez Corrêa. O diretor levou para o palco do Teatro Oficina, em 1967, uma montagem hoje clássica de "O Rei da Vela", a história em três atos de um agiota interessado em ascender socialmente que na verdade era um deboche da burguesia brasileira.

Zé Celso conta que "tudo tinha mudado" depois do golpe militar de 1964 e sua companhia estava à procura de um texto "que tivesse o espírito do tempo". O texto de Oswald, esquecido por 30 anos, respondia à altura.

"Aí é que tudo foi revelado. Eu fui até o filho mais velho do Oswald, que tinha um baú com toda a obra dele. Caí de cabeça e li tudo. Me apaixonei totalmente por Oswald de Andrade", afirma Zé Celso, acrescentando que acha o autor o maior filósofo brasileiro devido a seus livros e teses. O realizador diz também querer montar uma encenação de outro texto do modernista, "O Homem e o Cavalo", sobre a formação histórica da sociedade ocidental.

Olhando em retrospecto, pode parecer que havia uma combinação entre os artistas para criarem obras à luz das ideias de Oswald. Mas este não foi o caso, diz Frederico Coelho, autor do livro "A Semana Sem Fim", sobre os desdobramentos da Semana de 22.

"Não havia uma plano dos tropicalistas para atualizarem a ideia de Brasil que havia na Semana de Arte Moderna. Porém, depois que eles começaram a fazer as ações que viriam a ser chamadas de tropicalismo, outras pessoas no campo da cultura foram mostrando a eles que aquilo tinha sim relação com o modernismo", afirma.

Numa entrevista que deu para o poeta Augusto de Campos em 1968, registrada no livro "Balanço da Bossa e Outras Bossas", Caetano Veloso reconhece formalmente o vínculo entre as vanguardas, ao dizer que "o tropicalismo é um neoantropofagismo". Para o cantor, ocupado à época em quebrar tabus, Oswald tinha "a violência que eu gostaria de ter contra as coisas da estagnação, contra a seriedade".

Embora Oswald fosse a força dominante, outros personagens da Semana de 1922 davam as caras. No cinema, o épico "Macunaíma", de Mário de Andrade, virou um filme de Joaquim Pedro de Andrade; Glauber Rocha costumava usar como trilha sonora de seus longas composições de Heitor Villa-Lobos, provavelmente o músico mais lembrado do modernismo.

Rocha também filmou o velório e o enterro do pintor Emiliano Di Cavalcanti -um documentário disruptivo do ponto de vista formal e que teve sua exibição proibida por décadas, a pedido da filha do pintor, Elizabeth di Cavalcanti.

O que esses filmes tinham em comum era uma busca pelo novo, pela ruptura, pela experimentação, numa tentativa dos realizadores de avançar a agenda artística -esta é outra semelhança dos anos 1960 com os modernos, talvez a mais óbvia. Isso só poderia se concretizar ao se olhar criticamente para o que já existia, diz Coelho.

"Tanto o modernismo quanto o tropicalismo foram movimentos que ganharam 'ismos'. São movimentos que pensam o Brasil de alguma forma nas suas contradições entre o erudito e o popular. Você não quer inventar uma ideia nacionalista de Brasil, mas você precisa repensar o Brasil."