<p>SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) - Era uma terça-feira, dia 29 de maio de 1973, quando o Jornal da Paraíba publicou um artigo sobre Zé Limeira. Mas o que importa aqui não é tanto o que foi dito sobre o violeiro e poeta popular paraibano. Lá pelas tantas do texto, no sexto parágrafo, há a transcrição de alguns versos do artista.

</p><p>“Eu já morei no Recife/ bem pertinho de socorro./ Ganhei 200 mil réis./ Comprei 200 cachorros./ O ano passado eu morri./ Mas este ano eu não morro.”

</p><p>Qualquer pessoa que ficou acordada no Brasil nos últimos anos provavelmente teve uma sensação de déjà-vu ao ler essas frases. E é bem possível que tenha reconhecido, embora em versão um pouco diferente, o trecho mais pop da música “Sujeito de Sorte”, composta por Belchior e lançada no disco “Alucinação”, de 1976 —ou seja, três anos depois da edição do Jornal da Paraíba.

</p><p>Essas dez palavras de “ano passado eu morri, mas esse ano eu não morro” viveram um estouro de popularidade nos últimos anos. Viraram hino da juventude progressista, batizaram bloco de Carnaval em São Paulo, foram sampleadas por Emicida na faixa “AmarElo” e ganharam ares de slogan de resitência contra o racismo, a transfobia e o governo Bolsonaro. Isso sem falar no verniz ainda mais recente de otimismo e de autoajuda instagramável em tempos de pandemia.

</p><p>Décadas atrás, com Belchior, essa mesma frase tinha forte apelo político e dialogava com a repressão da ditadura militar brasileira. Mas vamos falar disso mais adiante, porque esses versos tampouco foram inventados pelo compositor cearense, como muitos acreditam. O nascimento é anterior, justamente com Zé Limeira.

</p><p>A mensagem surgiu, na verdade, como uma brincadeira. Nascido provavelmente no fim do século 19 e morto nos anos 1950, Zé Limeira é a própria definição de literatura oral no Brasil —ele não deixou nada escrito, não foi fotografado nem teve a sua voz gravada. Tudo o que sabemos sobre ele foi passado no boca a boca ao longo de gerações.

</p><p>Com obra ligada à cantoria e ao repente, Zé Limeira é o que chamaríamos hoje de poeta nonsense. Suas rimas, embora corretas e metrificadas, jamais faziam sentido e brincavam com o absurdo. Em seus poemas, Pedro Álvares Cabral foi inventor do telefone, dom Pedro 2º governava a Palestina e o rei Salomão conhecia Napoleão.

</p><p>É essa a gênese de “ano passado eu morri, mas esse ano eu não morro” —um flerte com o nonsense e com um senso de humor que lembra o meme "morreu, mas passa bem". Ou seja, sem o viés político que surgiu com Belchior e a carga social que ganhou hoje em dia.

</p><p>Isso faz com esse seja um dos casos mais curiosos da literatura e do cancioneiro brasileiro. O autor italiano Umberto Eco costumava dizer que os textos literários funcionam como mensagens lançadas em garrafas por seus autores, cabendo então aos leitores a tarefa de decodificar e decifrar —e leitores de diferentes épocas podem ter diferentes chaves de interpretação. É o que ocorre com Zé Limeira.

</p><p>“Ele era uma espécie de Didi Mocó, queria divertir”, conta o escritor Braulio Tavares. “Pelo que sei, era um cara inculto, analfabeto, sem muita informação. E o público achava graça justamente porque percebia o nonsense.”

</p><p>A falta de documentação histórica e a obra sem registro escrito fizeram com que a figura de Limeira se tornasse uma espécie de heterônimo coletivo. Quando repentistas e cantadores brincavam com o absurdo, eles costumavam atribuir a autoria dessas gozações ao poeta.

</p><p>As rimas eram incorporadas à obra dele, replicadas, alteradas, como num telefone sem fio. E aí nasce um complicador extra, já que é impossível cravar que “ano passado eu morri, mas esse ano eu não morro” foi de fato criado pelo paraibano.

</p><p>“Zé Limeira reúne versos de outros cantadores assim como Lampião aglutina crimes de outros cangaceiros”, afirma o escritor e pesquisador Astier Basílio, que diz ter encontrado a certidão de óbito de Limeira durante pesquisas para escrever a biografia de outro personagem central nesta história —o jornalista e escritor paraibano Orlando Tejo. Foi Basílio também que encontrou o recorte do Jornal da Paraíba que abre esta reportagem.

</p><p>Orlando Tejo morreu em 2018 e é autor de “Zé Limeira, o Poeta do Absurdo”. Principal obra sobre o artista popular, o livro foi lançado em 1973 e mistura ficção e jornalismo.

</p><p>Apesar de Tejo ter transcrito no livro muitas das estrofes atribuídas a Limeira, ele também inventou uma porção de outras e convidou escritores a fazerem o mesmo. Com tudo creditado ao poeta do absurdo, o autor ajudou a borrar ainda mais as fronteiras entre realidade e ficção.

</p><p>Tanto que no livro de Tejo, atualmente esgotado e sem novas edições, os famosos versos surgem ligeiramente diferentes. “Eu já cantei no Recife,/ Dentro do Pronto Socorro,/ Ganhei 200 mil réis,/ Comprei 200 cachorro,/ Morri no ano passado,/ Mais esse ano eu não morro”, diz a nova letra. Como o artigo do Jornal da Paraíba é anterior ao livro, porém, as chances de o trecho ser mesmo de Zé Limeira aumentam.

</p><p>“Belchior provavelmente pescou isso da obra do Orlando Tejo”, acredita Jotabê Medeiros, jornalista e biógrafo do cantor. O autor de “Belchior - Apenas um Rapaz Latino-americano”, publicado pela Todavia em 2017, lembra que o título se tornou best-seller nos anos 1970. “E Belchior é o compositor com maior background literário naquela época”, acrescenta.

</p><p>Com letras que trazem referências a Dante Alighieri, Olavo Bilac e Beatles, por exemplo, o cearense dá outras camadas às palavras de Zé Limeira.

</p><p>“Tenho sangrado demais,/ Tenho chorado pra cachorro/ Ano passado eu morri,/ Mas esse ano eu não morro”, canta ele em “Sujeito de Sorte”, mantendo a rima com a palavra “cachorro”, mas mudando o resto. Lançada em 1976, durante o governo Geisel, a faixa ganhou fortes tons políticos e escancarou a repressão da ditadura militar, sobretudo com o início da canção. “Presentemente eu posso me considerar um sujeito de sorte/ Porque apesar de muito moço, me sinto são e salvo e forte.”

</p><p>“Mas ‘Sujeito de Sorte’ nunca foi hit”, conta Jotabê Medeiros. “Ela só fez sucesso depois que o Belchior morreu, em 2017.”

</p><p>O mesmo não pode ser dito de Zé Limeira. Ele influenciou o surrealismo sertanejo de Alceu Valença, Ave Sangria e Zé Ramalho. Esteve no repertório de grupos como Mestre Ambrósio, que cantou “Se Zé Limeira Sambasse Maracatu”. Fez parte da formação de nomes como Chico César. E até José Sarney era visto por Brasília zanzando com um exemplar do livro de Orlando Tejo.

</p><p>Mas quando "Sujeito de Sorte" bombou, décadas depois, “ano passado eu morri, mas esse ano eu não morro” eclipsou Zé Limeira e se tornou slogan de renascimento e resistência. “É como um grafite de Maio de 1968, virou uma espécie de síntese desses tempos”, opina Medeiros.

</p><p>Não à toa caiu no repertório de Emicida. O rapper paulistano usou os versos na faixa “AmarElo”, do álbum homônimo de 2019, na qual são entoados por Pabllo Vittar e Majur. Essas dez palavras na voz de uma drag queen e de uma artista transgênero ganham novos níveis de interpretação e reforçam a ideia de resistência que ecoa no resto da composição. “Levanta essa cabeça/ Enxuga essas lágrimas, certo?/ Respira fundo e volta pro ringue”, fala um dos trechos do rap.

</p><p>“É um grito de ‘chega’, dado por pessoas cansadas do sistema e da opressão”, diz Majur. “Essa música deixou de ser só um projeto musical.” No YouTube, o clipe de "AmarElo" já bateu 10 milhões de visualizações e tem mais de 20 mil comentários, muitos com desabafos sobre racismo, transfobia, saúde mental, falta de oportunidades das classes mais pobres e conquistas apesar das dificuldades.

</p><p>“Essa intenção politizada não era a de Zé Limeira, acho. Mas todo verso, depois que cai no mundo, está sujeito a releituras que podem enriquecê-lo ou empobrecê-lo”, pontua Braulio Tavares.

</p><p>É como a tal mensagem lançada em uma garrafa.

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