SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) - Uma das atividades realizadas nas aulas de Libras da professora Chrystianne Simões, docente da Universidade São Judas, em São Paulo, desafia estudantes ouvintes (ou não surdos) a utilizar a língua de sinais em situações do cotidiano, como pedir um sorvete ou fazer uma compra no supermercado.

“Você não imagina o que ouvimos ao solicitar, por exemplo, meio quilo de carne em linguagem de sinais. As pessoas do outro lado do balcão falam absurdos, pois estamos ouvindo, mas elas não sabem que é um exercício. Somos tratados como lixo”, diz Simões.

Reconhecida como meio legal de comunicação em 2002, a Libras (Língua Brasileira de Sinais) ainda é pouco difundida. Isso ocorre ainda que 88,1% de 1,3 milhão de matrículas de alunos com deficiência (além de pessoas com transtornos do espectro autista e altas habilidades ou superdotação) estejam em classes comuns, de acordo com o Anuário Brasileiro da Educação Básica de 2021.

Com dados do Censo Escolar de 2020, pesquisa do movimento Todos pela Educação mostra que apenas uma parte pequena dos estudantes com deficiência, incluindo a comunidade surda, estava matriculada em salas ou escolas especializadas (156 mil alunos).

Com a maioria dos alunos com deficiência em turmas convencionais, é preciso pensar nas condições de permanência, como a acessibilidade do currículo, destaca Raquel Franzim, diretora de educação do Instituto Alana.

No caso dos estudantes surdos, Clarissa Guerretta, professora e coordenadora dos cursos de Letras-Libras da UFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro), lembra que nem todas as instituições contam com intérpretes de Libras, o que é também um fator prejudicial à inclusão e leva muitos alunos a fazer leitura labial.

No entanto, mesmo que todas as escolas tivessem intérpretes em sala de aula, diz Franzim, isso não atenderia à demanda da comunidade surda por um “trabalho linguístico”.

“A gente pode ter um intérprete do inglês, mas o conhecimento da língua exige também uma compreensão das suas origens e características para você ser usuário”, diz Franzim. “Para isso, todos nós deveríamos ser falantes dessa língua.”

A repórter compreendeu a importância disso na prática ao entrevistar Guerretta, que é surda. A conversa ocorreu graças aos intérpretes Helena Mora e Rafael Monteiro, que participaram da entrevista.

Em 2018, uma das propostas de Jair Bolsonaro para a comunidade surda, ainda enquanto candidato, era o acréscimo da Libras como uma disciplina obrigatória na educação básica e nos cursos de saúde.

A criação de uma disciplina obrigatória, segundo Franzim, poderia ser um primeiro passo para a inclusão de estudantes surdos, mas não uma solução duradoura. Para ela, o ideal seria propor o ensino bilíngue a todos os alunos, com e sem deficiência, do mesmo modo como é trabalhada a língua portuguesa, presente em toda a grade curricular.

A introdução da Libras para estudantes com e sem deficiência deve partir das redes públicas, diz Franzim, inicialmente pela educação infantil, pois a mudança exige qualificação de profissionais e, portanto, não seria possível implementá-la em todos os anos ao mesmo tempo.

O Ministério da Educação não respondeu aos questionamentos sobre o andamento do projeto.

“Deveríamos tratar Libras como sendo tão importante quanto inglês e espanhol, porque beneficia não só estudantes com deficiência auditiva, mas todos os alunos”, diz Franzim. Como benefícios, ela ressalta a ampliação da interação social e o desenvolvimento cognitivo intrínseco ao aprendizado de línguas.

A professora Sinara Pollom Zardo, diretora de acessibilidade do Decanato de Assuntos Comunitários da UnB (Universidade de Brasília), afirma que é preciso ir além da disciplina obrigatória. “Deve ser uma atividade transversal, porque o estudante surdo não se comunica só no momento da aula, mas em todas as situações.”

Simões também considera positiva a implementação no currículo. “Introduzir Libras para todas as crianças é buscar a inclusão da comunidade surda. Permite que os alunos se comuniquem diretamente com os colegas surd—os e seria um processo extremamente rico.”

A professora considera, no entanto, que faltam profissionais —cuja formação depende do protagonismo de pessoas surdas— e estrutura para efetivar a medida nas escolas.

Para Guerretta, a inclusão de Libras nas salas de aula depende da capacidade de cada instituição, por isso é preciso conhecer as demandas de cada local para se implementar uma política.

Há, assim, um debate sobre a melhor maneira de adotar o ensino bilíngue: nos estabelecimentos comuns ou em escolas especializadas. Franzim, do Instituto Alana, avalia que a primeira opção seria mais sustentável, pois aplicar recursos públicos em escolas convencionais traria benefícios para mais pessoas.

“Uma parte da sociedade pensa que alunos com deficiência atrapalham o aprendizado dos outros e, hoje, ela está tendo voz, por exemplo, com o ministro da Educação, que inclusive falou isso.”

Para ela, as instituições especializadas não devem substituir a escola comum, onde crianças e adolescentes surdos terão contato com estudantes ouvintes, mas podem funcionar como complemento no contraturno escolar.

Guerretta, da UFRJ, por sua vez, reconhece a importância da escola especializada na convivência com outros surdos. A professora, que é surda, conta que, durante o período escolar, comunicava-se oralmente e que aprendeu Libras apenas aos 26 anos. “Aí que eu me dei conta que existe um mundo surdo e eu sou surda também”.

Uma pesquisa encomendada ao Datafolha pelo Instituto Alana mostrou que 86% dos entrevistados concordam que as escolas se tornam melhores ao incluir crianças com deficiência. Questionados se elas atrasam a aprendizagem de estudantes sem deficiência, 68% discordaram, 30% assentiram e 2% não sabiam.

O levantamento entrevistou 2.074 pessoas com mais de 16 anos em 130 municípios brasileiros, entre os dias 10 e 15 de julho de 2019.