SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) - Parte importante do sabor de "Emily em Paris" está em rir de situações e personagens que transitam pela indústria francesa do luxo. Mas a má notícia para os fãs da série é que aquilo tudo não passa de uma caricatura, não raras vezes mal ajambrada, do que de fato acontece nos bastidores.

O guarda-roupa cheio de grifes e bolsas exuberantes da protagonista não passa de uma ilusão. Mesmo trabalhando em uma agência de relações públicas e marketing digital para grifes fictícias, Emily enfrentaria o rígido código de vestimenta, informal e não escrito, que mata os desejos mais ardentes das aspirantes a "insider" fashionista.

Cores, brilhos e, principalmente, saltos altos, são proibidos --se você não é Anna Wintour, a editora da Vogue que inspirou o "O Diabo Veste Prada", ou uma celebridade contratada para abastecer os sites de entretenimento, você não é a notícia, logo, não queira desviar o olhar dos outros.

No caso dos sapatos, ou a pessoa quebraria o salto no primeiro pisão de um segurança, como o que este repórter levou de um dos guardas de Rihanna no desfile da Dior, ou ganharia calos por semanas. Não é possível sair admirando a cidade em posts fofos, como Emily faz; é preciso correr. Você sempre estará atrasado.

Todos os desfiles de Paris são organizados em pontos distintos da cidade. Os atrasos recorrentes, alguns de até uma hora, não têm a ver com desorganização dos camarins, mas à fila quilométrica de carros luxuosos que carregam convidados e supereditores.

O metrô muitas vezes é a opção menos arriscada para quem não está ali para causar ou manter status. Não haveria um look dela que resistisse às oito viagens diárias, sem contar baldeações nos túneis que cheiram a velho mundo, de um dia normal na temporada.

Mesmo que um de seus motes seja tratar de poder e privilégios, a moda por dentro não é tão chique assim.

Sabe aquelas garotas montadíssimas com a etiqueta reluzente? A roupa não é delas, mas foi conquistada por algumas horas um ou dois dias antes do flash, nos chamados "fittings". As marcas separam araras com o que está na loja para usar aqueles corpos como cabides luxuosos em troca de um passe para selfie glamoroso. A escolha muitas vezes nem passa pelo elo mais fraco da roda, que é o estilista.

A personalidade controladora do costureiro Pierre Cadault é uma fantasia que não encontra eco nos dias de hoje. Piada com o nome de Pierre Cardin emoldurado pela persona de Karl Lagerfeld, desde o leque até os óculos escuros, ele teria as crises existenciais engolidas pelo sistema.

Escolhas sobre a condução dos negócios fora do escopo do ateliê e da passarela são feitas pelos executivos dos grupos controladores e, depois, pelos responsáveis regionais das marcas. Cada país tem autonomia para defender pontos de vista e, também, os seus garotos-propaganda.

Algumas marcas têm diretrizes mais rígidas, outras, mais relaxadas, mas tanto poder de escolha sobre posts em redes sociais nunca estariam nas mãos de Cadault, muito menos de uma recém-chegada como Emily ou da chefe dela, outra caricatura de esperteza, arrogância e fogosidade à margem da órbita fashion.

Sexo, a bem da verdade, é item fora de moda por aqui. É curioso como a publicidade, e a própria passarela, venda um ideal libertário e looks cheios de pele exposta quando quem trabalha para criar a imagem não pareça se ver nela.

O nível de profissionalização desse mercado bilionário atingiu um grau tão elevado e o tempo para fazer as coisas acontecerem é tão curto que não parecem plausíveis os flertes constantes de Emily.

Quanto ao assédio, mesmo maquiado de elogios maliciosos direcionados à garota, esse parece vivo em meio às fofocas, embora mais policiado desde a onda do MeToo. Convites para passeios em barcos ou conversas longe do entourage ainda acontecem na surdina.

Nem tudo, porém, é desconectado da realidade. Se o invólucro fantasioso é a maior crítica ao roteiro e também um dos chamarizes de audiência, ele é fiel ao propósito de ilustrar o pendor de se deixar seduzir pela beleza e pela busca de uma vida mais despreocupada, menos oprimida pelo cotidiano burocrático.

Ao mesmo tempo em que ri da moda, a série lança mão dos estereótipos criados pela cultura pop para desenhar uma outra dimensão da realidade, bem menos opressora que a baseada em fatos.