SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) - Quando seu livro "Drogas para Adultos", da Companhia das Letras, foi lançado no Brasil, em junho, o neurocientista Carl Hart foi atacado nas redes sociais. Por defender no volume e em entrevista a este jornal que usar drogas faz parte do direito à busca pela felicidade, foi chamado de viciado por Sérgio Camargo, presidente da Fundação Cultural Palmares, e de "defensor de cracudo" e outros xingamentos.

O professor da Universidade Columbia, nos Estados Unidos, está no Brasil para duas palestras no evento Fronteiras do Pensamento, em Porto Alegre e em São Paulo, esta na quarta, dia 24.

Pergunto a ele sobre os ataques e ele não parece intimidado pelo que chama de "tentativa desesperada". "Fica claro que as pessoas que fizeram suas carreiras atacando as drogas e os usuários de drogas são fraudes. Então esse é o jeito delas de me atacar de volta", diz.

Ele também falou sobre os experimentos que faz em seu laboratório, em que dá a pessoas, dependentes químicas ou não, a possibilidade de usar drogas ou de escolher outro benefício, como dinheiro ou uma folga do trabalho. "Vemos que as pessoas tomam decisões racionais. Isso mostra que as drogas não são especiais, elas produzem sentimentos de felicidade, prazer e bem-estar assim como outras atividades como sexo, exercício e estar com amigos", afirma.

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Pergunta - Depois que você publicou 'Drogas para Adultos' no Brasil, houve ataques online contra você. Por que você acha que suas opiniões deixam as pessoas tão bravas?

Carl Hart - Primeiro, vamos ser claros, tem muito mais amor [do que ataques]. Quanto àqueles que estão mostrando sua raiva, muito do que eu estou dizendo ameaça seus bolsos, suas finanças. Em um país como o Brasil, muito do dinheiro para tratamento [de usuários de drogas] vai para comunidades terapêuticas geridas por organizações religiosas que não têm qualificação para oferecer tratamento ou qualquer coisa que não sejam conselhos espirituais.

Eu digo que a adicção é a aberração, não a norma. A vasta maioria das pessoas que usa drogas não se encaixa no conceito de dependente, apesar de muitas vezes nós os internarmos. Tudo o que eu digo são coisas razoáveis, lógicas. Digo que as drogas não são especiais, são como qualquer outro comportamento que gera reforço positivo, como fazer sexo, se divertir ou outros. Mas nós não tratamos o sexo como tratamos as drogas.

Essas coisas que eu digo ameaçam algumas pessoas e ameaçam políticos, porque a população começa a ver que estão pondo a culpa nas drogas por problemas que já existiam muito antes, como o desemprego ou a violência. Também gosto de frisar que as pessoas neste país que participam de cartéis de drogas o fazem por sobrevivência; é isso que as pessoas fazem quando não têm acesso à economia formal.

Também digo que pessoas como eu, muito produtivas, organizadas, disciplinadas, usam drogas e não têm problemas. Isso mostra que o problema não são as drogas, são outras coisas. Fica claro que as pessoas que fizeram suas carreiras atacando as drogas e os usuários de drogas são fraudes. Então esse é o jeito delas de me atacar de volta, mas é uma tentativa desesperada.

Qual a sua opinião sobre a recuperação de usuários de drogas?

CH - Muitos programas como os Narcóticos Anônimos e comunidades terapêuticas partem da premissa de que você não pode usar drogas nunca mais. É uma bobagem. Vou fazer uma analogia -muitas das pessoas que vemos nesses locais de recuperação são jovens, que podem ou não ter cometido erros quando usaram drogas e se sentem perturbados por isso. Quando você é jovem, você comete erros, faz parte do nosso desenvolvimento. Eles nos ensinam quais são os limites e quais são as habilidades de que precisamos para participar dessas atividades. Pense em alguém que cometeu um erro em uma atividade sexual. Todo mundo fez isso quando jovem. Seria como se você pensasse "ah, agora tenho que me abster de fazer sexo pelo resto da vida".

Isso seria loucura.

CH - Exatamente! Mas é isso que fazemos com as drogas, porque as tratamos como se fossem especiais e mágicas. Nós deixamos com que essa narrativa fosse prevalente, em parte porque é mais fácil, aí nós não precisamos gastar tempo ajudando as pessoas a desenvolver habilidades. Nós também não fazemos isso bem com o sexo, mas a maioria das pessoas sabe que sexo e orgasmos são ótimos, então elas pensam, 'vou continuar tentando até eu acertar'. Com drogas você não tem acesso a tentar até acertar. Então as pessoas não entendem o prazer e felicidade que poderiam estar tendo com elas.

Houve 100 mil mortes por overdose de drogas nos Estados Unidos em 12 meses. O que você diz às pessoas que dizem 'tudo isso é muito legal, mas drogas são perigosas, pessoas estão morrendo'?

CH - Esses dados são provisórios e incluem todas as mortes causadas por overdoses não intencionais, não só de opioides mas também de medicamentos vendidos com e sem receita, antidepressivos e outros. Os dados provisórios sempre exageram os números. Na divulgação anterior eles disseram 90 mil e depois caiu para 70 mil. Desse número, os opioides respondem por mais ou menos metade. A maioria das pessoas que morre de overdose tem mais de uma droga em seu sistema. Os médicos legistas que investigam essas mortes não testam para a presença de todas as drogas e muitos nem testam para saber o nível de droga no sistema da pessoa. Então não tem como saber como a pessoa realmente morreu.

O que acontece nos Estados Unidos é que muitas drogas contêm fentanil, que é um opioide potente. O usuário que está procurando um opioide como heroína, se ela contiver fentanil ele corre o risco de uma overdose ao usar sua quantidade habitual. Mas esse é um problema corrigível. Nós podemos oferecer testagem gratuita das drogas. Quando as autoridades dizem que se importam com o fato de que as pessoas estão morrendo, essa deveria ser a primeira coisa a implementar.

Outro problema é a formulação dos opioides, um remédio popular vendido com receita médica combina uma pequena dose de oxicodona com uma dose grande de paracetamol. Então as pessoas tomam dez, 20, 30 comprimidos para ter uma dose moderada de opioide, mas a quantidade de paracetamol que tomam faz seu fígado parar de funcionar. E nós não informamos a população sobre isso. Deveríamos remover o paracetamol desses remédios, ele não tem função a não ser tentar impedir as pessoas de tomarem opioides.

Você falou em testagem de drogas, outros países usam essa e outras estratégias de redução de danos. Os Estados Unidos e o Brasil têm em comum o fato de que essas estratégias são muito impopulares. Por quê?

CH - Eu acho que é porque nós permitimos que as vozes das pessoas que apoiam medidas draconianas sejam as únicas vozes nessa conversa. Se o objetivo é que as pessoas não morram, por que não oferecer testagem de drogas? Alguns dirão, "nós não queremos mandar uma mensagem que encoraje o uso de drogas". Aí nós deveríamos lembrá-los de que esse é o mesmo argumento que usavam contra distribuir camisinhas quando estávamos preocupados com o HIV-Aids, e olha onde fomos parar. Não deveríamos seguir esse raciocínio ridículo. Há vidas demais em risco para a gente não ser muito insistente nesse ponto.

Você pode falar um pouco sobre a ciência por trás da ideia de que as drogas não são especiais e que usá-las é similar a outros comportamentos humanos?

CH - Na minha pesquisa, trazemos pessoas ao laboratório, algumas com diagnóstico de dependentes químicos, outras não. Oferecemos a elas drogas de que gostam, cocaína, maconha, metanfetamina e outras. Em alguns experimentos, damos a elas uma escolha, você pode usar a droga ou ter uma alternativa como ganhar dinheiro, comer um doce ou tirar uma folga do trabalho. Vemos que as pessoas tomam decisões racionais. Quando o valor em dinheiro é alto, elas escolhem o dinheiro quase toda vez. Se estão exaustas do trabalho, escolhem a folga. Isso acontece tanto com os que receberam diagnóstico de dependência quanto com aqueles que não receberam.

Isso mostra que as drogas não são especiais, elas produzem sentimentos de felicidade, prazer e bem-estar, assim como outras atividades como sexo, exercício, ver amigos.

É verdade que algumas drogas produzem sintomas de abstinência, como o álcool, cuja abstinência pode matar, ou os opioides. Mas sintomas de abstinência também acontecem com antidepressivos, cafeína e nicotina.

No final de semana, oito corpos foram achados em São Gonçalo, no Rio de Janeiro, após uma ação policial. Começamos a ver um pouco mais de debate sobre a conexão entre guerra às drogas e morte de jovens negros no Brasil, mas ainda há muita gente que nega essa ligação. Por quê?

CH - Algumas pessoas não querem ver, nunca conseguiremos com que elas vejam. Eu não sei o que dizer a essas pessoas, na verdade eu evito gastar tempo tentando convencê-las. Tento convencer pessoas razoáveis que vivem suas vidas baseadas em evidência científica. Se as pessoas não conseguem ver, em um país como o Brasil, que a polícia mata predominantemente pessoas pobres e negras, é porque a pessoa quer ficar teimosamente ignorante. Não é essa pessoa que eu quero atingir, eu tento atingir as pessoas que têm compaixão e se importam com os membros da sociedade, seja quem forem.

Você acha que tem sucesso em convencê-las?

CH - Eu acho que em parte, mas ainda há muito trabalho a fazer, e eu espero que mais pessoas se juntem a mim nessa luta.

Gostaria de acrescentar algo?

CH - A primeira frase da Constituição [brasileira] garante a liberdade a todos vivendo no país. Isso significa que você pode viver sua vida como quiser, desde que não atrapalhe os outros que estão fazendo o mesmo. Então não entendo por que as pessoas não estão mais bravas com o fato de que isso não está acontecendo na prática. A Carta também garante a igualdade, que ninguém tem direitos mais importantes que os de outro. Não entendo por que não temos essas conversas sobre liberdade e igualdade em público, se é isso que a Constituição garante.