SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) - Vladimir Putin não é propriamente um mentiroso compulsivo. Mas ele é tão esperto ao elaborar sua própria versão dos fatos que a impressão que deixa é a de um estadista quase impecável, cujo nariz jamais cresceu em razão de uma mentira. E vejam que isso vale até para a Ucrânia.

A sensação transparece nas quase quatro horas de entrevistas que o governante russo gravou durante pouco mais de dois anos. Ao lado dele, o produtor e cineasta americano Oliver Stone, com competência e um difícil apartidarismo, em receita que havia experimentado em 2014 com o venezuelano Hugo Chávez.

Assistir novamente às entrevistas de Putin é dar um passeio pelo que sobrou de suas declarações anteriores sobre a política ucraniana.

A guerra agora em curso já estava formatada com praticamente os mesmos atores. Era um conflito em praça pública, com poucas dezenas de mortos, mas já com uma maneira apaixonada de amar ou odiar essa poderosa vizinha chamada Rússia.

E com as duas forças de gravidade que já puxavam a Ucrânia em sentidos opostos. De um lado, a democracia e a ocidentalização, representadas de modo aproximativo e meio caricatural pela União Europeia e pela Otan, a aliança militar guiada pelos Estados Unidos. De outro, a alma eslava que sobrevivera na União Soviética, onde Rússia e Ucrânia eram uma coisa só, com as afinidades linguísticas e uma forte vertente cultural, que em seguida o nacionalismo conservador acusou o Ocidente de tentar usurpar.

Mas, vejamos. Stone pede para que Putin lhe conte tudo sobre a Ucrânia. Ele parte para uma narrativa de algo que ele próprio denunciara entre os russos, nos meses que precederam sua ascensão. As privatizações foram rápidas e empobreceram as pessoas. A miséria passou a andar de braços dados com potenciais rebeliões.

A Rússia comunicou então a seus vizinhos menores que negociava a entrada na Organização Mundial do Comércio. Em troca, a Ucrânia contou que estava negociando sua adesão à União Europeia.

Seria um soco no estômago, da maneira como Putin colocou. E o chato --o que ele não disse-- era que a reviravolta ucraniana partia de Viktor Ianukovich, que em fevereiro de 2014 aproximou a Ucrânia da guerra civil. Pois ele teria fechado um acordo com os russos, deixou a capital, Kiev, e foi deposto pela oposição.

A chamada Revolução Laranja estava vitoriosa. Mas, para a Rússia e Putin, o que houve foi um golpe de Estado. Ianukovich fechou com o Kremlin e deixou seus partidários sob a mira dos nacionalistas. O ex-governante fugiu para a Crimeia, província ucraniana que a Rússia em seguida anexaria. Exilou-se em seguida em solo russo e estaria hoje na Belarus, "à disposição" de quem quiser convidá-lo para governar.

Aliás, a própria anexação da Crimeia, que custou a Putin sanções econômicas dos EUA, é narrada, na entrevista a Oliver Stone, como um episódio quase prosaico. A população local se apoderou dos prédios públicos da península e os entregou aos representantes de Moscou. Simples assim.

Vladimir Putin dá o melhor de si mesmo para parecer diante das câmeras como um homem simples, que gosta dos esportes (judô, hipismo e hóquei sobre o gelo) e que preserva da curiosidade pública sua vida pessoal. Ele se casou uma única vez, tem duas filhas e netos que não aparecem na mídia.

Trabalha. Em três gabinetes no Kremlin, um mais brega que o outro, com um excesso de aparelhos telefônicos e telas para videoconferência. Por uma delas, despachou com policiais rodoviários sobre problemas com uma estrada na região dos Urais.

Ele guiou seu próprio automóvel numa única cena do documentário. É atento e vagaroso. O tipo do motorista que não imaginamos que possa um dia sair embriagado ao volante.

A propósito, surge uma única vez com um copinho de vodca nas mãos. Mas diz a seus companheiros que a bebida deve ser tomada apenas mais tarde. Antes disso, todos devem concluir uma missão. Foi na segunda guerra da Tchechênia, a província islâmica separatista cuja população masculina --e o documentário não toca no assunto-- Putin praticamente dizimou.

Há no filme de Stone outras zonas de silêncio, como a suspeita de que Putin tenha ordenado o envenenamento de adversários que lhe foram excessivamente incômodos. Coisas que afinal acontecem.