SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) - Estamos na casa da pianista Martha Argerich em Bruxelas, no começo dos anos 2000. Ela e Nelson Freire, muito amigos desde a juventude de estudos em Viena, se preparam para um dueto de pianos em um festival no sul da França, que aconteceria alguns dias depois.

"E isso aqui? Vamos ler?", ele diz sobre um livro de partituras que pega em meio aos papéis espalhados sobre o piano de cauda. "Não sei, nunca vi", responde ela, sem entusiasmo, sobre "Bailecito para Dos Pianos", de Carlos Guastavino, argentino como Argerich. "Só uma vezinha", insiste o brasileiro.

Cada um ao seu piano, dedilham as primeiras notas, hesitam, parecem brincar diante do desconhecido --tendo como amostra apenas aqueles segundos de execução, é difícil acreditar que sejam dois dos maiores pianistas que os séculos 20 e 21 viram.

Não demora, porém, para que a interpretação ganhe corpo e, cinco dias depois, Freire e Argerich apresentam a peça de Guastavino de modo extraordinário em um teatro lotado.

Filmar na casa de Argerich foi um dos maiores desafios de "Nelson Freire", segundo João Moreira Salles, diretor do documentário lançado em 2003 e que reestreia nesta semana no Rio de Janeiro e na seguinte em São Paulo. O relançamento é uma homenagem ao pianista mineiro, que morreu no Rio em 1º de novembro, aos 77 anos.

"Dizer que eles [Freire e Argerich] eram muito amigos é pouco. Era uma dessas amizades tão profundas que, quando estavam juntos, toda terceira pessoa parecia excessiva, como alguém externo à trama que não é capaz de compreender o que se passa ali. Ficamos uma noite inteira na casa dela em Bruxelas --Argerich trocava o dia pela noite-- e foram horas muito penosas, cheias de dedos, de cuidados", lembra o diretor a este repórter.

"Não que ela não nos tenha recebido bem, recebeu sim, abriu as portas, mas era impossível não se achar um intruso. Quando os dois tocavam uma redoma se fechava sobre eles. Nós ficávamos de fora."

Para aumentar a tensão sob aquela aura de intimidade, Salles e Toca Seabra, diretor de fotografia, deixaram o gato de Argerich fugir. "Acho que ela não percebeu. O sol nascia em Bruxelas e nós zanzando pelas ruas sussurrando 'bichano, bichano'. Bichano voltou sozinho."

Há um aparente paradoxo no comportamento de Freire nessas passagens na casa da pianista, que estão em "Martha Argerich" e "Primeira Leitura", dois dos 31 blocos temáticos que compõem o documentário. Ele demonstra contentamento ao lado da amiga de uma vida inteira, sorri algumas vezes, mas, entre um trago e outro do cigarro inseparável, jamais perde um certo recato.

Em um tempo em que cantores e instrumentistas, da música clássica ou popular, se promovem em redes sociais e programas de TV e rádio, Freire seguia no contrafluxo. "Quando te põem acima da música, já distorce tudo", disse o pianista em conversa com o diretor.

A proximidade entre o pianista e a equipe de Salles, indispensável para a realização do filme, foi conquistada aos poucos --e não poderia ser de outra forma no caso de um homem tão reservado.

"Tenho a impressão que ele aceitou fazer o filme porque percebeu que não tínhamos pressa, que estávamos dispostos a deixar o tempo correr e esperar pelo momento oportuno, a hora em que ele passasse a se sentir à vontade comigo e com a equipe", afirma o diretor.

"Começamos filmando à distância. Só com o tempo aproximamos a câmera, o que, no caso, equivalia a dizer 'agora somos amigos'. O Nelson era assim. Se existia afeto, tudo ia bem. Se não existia, ele se fechava. Nós o acompanhamos por quase dois anos. Com grandes intervalos, é verdade, mas o convívio durou todo esse tempo."

Visto quase duas décadas depois da sua estreia, "Nelson Freire" volta a chamar a atenção pelas interpretações precisas e tocantes de peças de compositores como Bach, Brahms e Villa-Lobos. Também ressalta a ligação misteriosa de pianista e piano; horas antes de um concerto, ele se refere ao instrumento como "criatura", com quem pode, em alguns casos, estabelecer uma relação de "antipatia mútua".

Saltam aos olhos ainda as imperfeições técnicas, como a câmera que às vezes treme e a presença irregular da luz. Trabalhar com uma equipe pequena, com poucos equipamentos, foi uma opção de Salles para não incomodar o pianista.

"Equipe numerosa, muita luz, tudo isso é uma forma de intromissão. A gente filma nas condições dadas, não nas condições ideais. Documentário --ou melhor, esse tipo de documentário-- é isso. Faz-se a imagem possível", afirma o diretor.

"Imperfeições são a moeda corrente do gênero e decorrem de uma escolha. O que importa mais, estar lá na hora certa para registrar um momento frágil, capaz de se desfazer ao mínimo toque, ou abdicar de certos registros --Nelson Freire andando pelas coxias minutos antes de um concerto, por exemplo-- em nome de um controle maior da cena? Claro, essa escolha existe num gradiente. Se as condições dadas forem demasiadamente críticas, não intervir será uma má aposta."

Ele continua. "Some-se a isso o fato de que o filme foi rodado em película, um suporte menos flexível do que o vídeo, e só tenho elogios ao trabalho do Toca Seabra, o fotógrafo do filme."

Ao responder sobre mudanças de percepção do documentário hoje em relação ao filme que ele concluiu no início da década de 2000, Salles fala sobre o Brasil, um outro país desde então.

"De lá para cá o Brasil mudou muito. No Nelson, afora o talento --de resto um bem dado, não conquistado--, eu admirava o recato, a falta de espalhafato, a solene responsabilidade com o trabalho bem feito. Uma vida paradoxalmente silenciosa dedicada à produção de beleza. Hoje tudo isso é ainda mais necessário do que em 2002. Certamente me comove mais."

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NELSON FREIRE

Quando reestreia nesta quinta (25/11) no Espaço Itaú de Cinema do Rio e em 2/12 no Espaço Itaú de SP

Produção Brasil, 2003, 1h42min

Direção João Moreira Salles