Dobra atendimento do Samu a acidentados no início da noite em São Paulo
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segunda-feira, 31 de janeiro de 2022
WILLIAM CARDOSO
SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) - O início da noite foi o período em que mais aumentou o número de chamados ao Samu (Serviço de Atendimento Móvel de Urgência) para socorrer pessoas acidentadas no trânsito da capital paulista. Dados obtidos pela reportagem via LAI (Lei de Acesso à Informação) mostram que das 18h às 18h59, por exemplo, o crescimento foi de 95,1%, na comparação entre janeiro e novembro do ano passado com igual período de 2019, pré-pandemia.
De forma geral, o aumento nos atendimentos realizados pelo Samu a acidentados do trânsito foi de 40% entre janeiro e novembro de 2021, na comparação com igual período de 2019. É o maior número ao menos desde 2016, período analisado pela reportagem. Além disso, a faixa que vai das 18h às 20h59 foi aquela com os maiores percentuais de crescimento, bem acima da média.
Especialistas apontam o aumento na circulação de motos como vetor de violência no trânsito. Também citam o começo do período noturno como o horário em que as pessoas costumam fazer pedidos de comida por aplicativos, hábito que ganhou força com a pandemia e o isolamento social. Mais pedidos, mais motos em circulação.
Médico de tráfego e diretor administrativo da Abramet (Associação Brasileira de Medicina de Tráfego), José Heverardo Montal afirma que o início da noite é um momento crítico por si só. "Somos animais preferencialmente diurnos. A gente começa a sofrer um determinado prejuízo com o pôr do sol", diz. "Fora o fato de que, nesse horário, a fadiga começa a se manifestar. Não por acaso, depois de oito horas de direção dobra o risco de sinistro", completa.
Segundo Montal, algumas coisas são evidentes na mobilidade, como o fato de a velocidade ser a grande vilã do trânsito. Para o especialista, o setor de entregas contribuiu com isso durante a pandemia, com mais motociclistas circulando por vias menos congestionadas, mais rapidamente.
"O aumento da frota de motocicletas foi espetacular. Tem a questão do desemprego durante a pandemia, quando muita gente viu no delivery uma alternativa de trabalho. Infelizmente, com os problemas causados pela precariedade", afirma.
Montal também aponta quem é a principal vítima de tanta pressa. "Se frequenta um pronto-socorro de hospital especializado em trauma, você vê que até 70% dos leitos de emergência são ocupados por esse tipo de acidentado, o jovem motociclista. A sociedade tem que tomar providências em relação a isso", diz.
Médico patologista e professor do IEA (Instituto de Estudos Avançados) da USP, Paulo Saldiva também aponta a explosão na circulação de motofretistas como indício da maior violência do trânsito. "O problema está na forma de pagamento. Você paga por produtividade e o indivíduo precisa ter velocidade na entrega", diz. "Quanto mais se arriscam, mais ganham dinheiro", diz.
Saldiva também ressalta que, com a crise, muita gente comprou ou emprestou motos para trabalhar com delivery sem qualquer experiência prévia. "Alguns estudos mostram que a maior parte dos acidentes acontece no primeiro ano de uso, o tempo que o indivíduo leva para aprender uma direção defensiva."
Segundo o especialista da USP, a conta de tantos acidentes graves é paga por toda a sociedade. "Em outras palavras, estamos subsidiando um negócio. Uma parte do lucro dessas empresas [de delivery] vem da perda da saúde das pessoas ou da incapacidade adquirida, do sistema de saúde que tem que pagar a reabilitação desse indivíduo, isso se ele sobreviver. Também da previdência social, quando se tem a pensão por invalidez", afirma Saldiva.
O levantamento feito pela reportagem também mostra que oito bairros vizinhos na zona sul são aqueles que têm, entre os 96 distritos da capital, o maior número de atendimentos do Samu a acidentados no trânsito. Juntos, eles representam 22,2% dos chamados da cidade. "É fruto da sinalização precária e da falta de fiscalização do trânsito. O indivíduo pode transgredir, não só o motociclista, mas o motorista também", diz Saldiva.
Segundo o professor da USP, esse indicador territorial se soma a outros que expõe os problemas sociais de São Paulo. "Isso vale para tudo. Tuberculose, mortalidade materna, Covid-19. Em São Paulo, o CEP é um importante marcador de redução de expectativa de vida. É uma cidade muito desigual."
Quem vive nas ruas conhece a realidade violenta do trânsito paulistano. Motoboy há mais de 20 anos, Leonildo Carlos Vieira, 50, já sofreu inúmeras quedas e guarda na memória os acidentes mais graves. "Já andei de resgate seis vezes", afirma, citando avenidas das zonas leste, oeste e sul da capital paulista como os locais onde foi socorrido. "Em 2001, coloquei cinco pinos na perna", diz.
Com uma rotina tão arriscada pelas vias da cidade, Vieira tenta se blindar como pode. A proteção por meio da fé é uma das apostas do entregador, que tem a palavra Deus, em adesivo refletivo, colada na frente, atrás, direita e esquerda da moto, além da bag que leva às costas. "À noite, brilha. Paguei R$ 11, mas gastei sem dó", diz. "Deus tem uma obra na vida de cada um. O cara só vai quando Ele chama", conta.
A história e os temores de Vieira são compartilhados por outros entregadores. Em um dos bolsões que concentram vários motociclistas na região do Capão Redondo (zona sul), entre 20 pessoas consultadas pela reportagem, 15 tinham sofrido acidente em 2021. Em alguns casos, até três quedas consecutivas em duas semanas de trabalho. Todos são unânimes em falar das longas jornadas de trabalho, de mais de 12 horas sobre a moto para conseguir um mínimo para sobreviver.
A prefeitura afirma que, ao longo dos anos, tem se estruturado para atender a demanda crescente dos grandes centros urbanos com aumento nas frotas de transporte e incidência de acidentes, principalmente com motos.
A Secretaria Municipal da Saúde diz que, na comparação entre o ano inteiro de 2021 com 2019, o aumento no número de atendimentos de acidentes de trânsito pelo Samu foi de 27% --nos números de janeiro a novembro, fornecidos pela própria prefeitura, o aumento foi de 40%, como registrado acima.
Já a Secretaria de Mobilidade e Trânsito diz que tem adotado uma série de medidas para proteger a vida de pedestres, ciclistas, motociclistas e condutores, como redução de velocidades máximas. Também cita a criação da Faixa Azul, na avenida 23 de Maio, como uma das ações específicas para motociclistas.
Representante de aplicativos como Ifood e Uber Eats, a Amobitec (Associação Brasileira de Mobilidade e Tecnologia) afirmou que não teve acesso aos dados que apontariam que o aumento no número de óbitos de motociclistas está ligado às entregas por aplicativo. "No entanto, análises internas mostram que os picos de demandas do food delivery não coincidem com os horários de aumento no número de acidentes de trânsito --mais relacionados com horário do "rush", diz, em nota.
A associação afirma também que a volta das pessoas às ruas, principalmente no final do ano de 2021 comparado ao ano de 2020, pode ter tido influência no número de incidentes no trânsito de forma em geral. "Geralmente a partir das 18h [rush da volta para casa] e entre 0h e 7h, historicamente horário de volta para a casa depois de festas e compromissos coletivos", diz, em nota.
A associação afirma também que suas associadas incentivam através de campanhas e comunicações constantes a importância do respeito às leis de trânsito, e não há qualquer incentivo por longas jornadas ou pela adoção de altas velocidades nas corridas.
O Rappi, que não faz parte da Amobitec, diz que busca constantemente a sustentabilidade de seu ecossistema, o que compreende soluções para beneficiar todos os seus elos, como os entregadores independentes. Centros de atendimento presenciais, suporte em tempo real e seguro para acidente pessoal, invalidez permanente e morte acidental são algumas das medidas.