Diretas Já ajudaram Fafá de Belém a deslanchar em Portugal, sua segunda casa
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segunda-feira, 14 de fevereiro de 2022
MAYARA PAIXÃO
GUARULHOS, SP (FOLHAPRESS) - Fafá de Belém já havia visitado Portugal uma vez. Era 1978, e o sucesso da novela "Gabriela", na qual cantava a música tema da protagonista, "Filho da Bahia", a levou a conhecer a terra natal de sua família. Mas a relação orgânica com o país, hoje sua segunda casa, seria construída sete anos depois. Foram as Diretas Já que levaram a artista a conhecer Portugal de norte a sul, numa época em que brasileiros e portugueses reerguiam suas democracias.
A cantora paraense participou, ao todo, dos 32 comícios das Diretas. Outros 15 foram destinados à defesa do nome de Tancredo Neves para a Presidência. Fafá, que se tornaria o rosto e a voz do movimento, parece se lembrar de todos, com riqueza de detalhes e nomes.
Um deles se destaca na história luso-brasileira da artista: Zé Nuno Martins, radialista e produtor cultural português responsável por inserir parte da classe artística brasileira na vida cultural da nova democracia portuguesa. "Estava fazendo um espetáculo no Canecão em 1985, e o Zé Nuno me convidou para fazer uma caravana lusófona por Portugal, que nem estradas tinha ainda", conta Fafá à reportagem.
A ideia era cruzar o país junto com o PS, o Partido Socialista, principal legenda, até hoje no poder, numa ação encabeçada por Mário Soares, um dos principais articuladores da redemocratização portuguesa e que, então, concorria ao Palácio de Belém --a sede da Presidência lusa.
Além da motivação eleitoral, a iniciativa queria adentrar um país, à época majoritariamente rural, que há pouco mais de uma década havia deixado para trás a ditadura de António Salazar, que durou de 1933 a 1974. Se uma canção, "Grândola, Vila Morena", foi a senha para a Revolução dos Cravos, que libertou Portugal, a caravana lusófona também trazia a música na linha de frente --e Fafá era a representante brasileira.
"Obviamente foi uma transição [democrática] traumática e confusa, mas absolutamente necessária", diz. "Eu vi Portugal sair do cinza, se ensolarar, começar a brilhar. Vi os jovens começarem a tomar conta das ruas, porque antes eles iam buscar a vida fora, não ficavam aqui."
Também foi em Portugal que Fafá encontrou semelhanças com Belém --um dos principais polos de atração de portugueses, onde cerca de 10.500 deles se estabeleceram da segunda metade do século 19 até 1920--, que nem sequer em outras regiões do Brasil encontrava. O cheiro da comida da avó, que morreu quando a cantora tinha seis anos, o polvo surrado na calçada de casa. A bacalhoada no Natal. O Círio de Nazaré.
Ela diz ter observado em Portugal um abraço aos brasileiros que talvez não seja tão recíproco. O escasso conhecimento da música contemporânea portuguesa, enquanto o cenário musical daqui encontra terreno fértil no país, seria um exemplo. Ela, por outro lado, não só é voz conhecida, como foi escolhida como uma espécie de embaixadora do clube de futebol Benfica com a canção "Vermelho".
Mas Fafá faz uma ressalva: a percepção internacional do Brasil, outrora animadora para artistas que transportavam a cultura além-mar, não vai nada bem. Perdeu-se o encantamento com o país que, envolto num terremoto político, viu a desigualdade crescer e a democracia degringolar. "O Brasil está muito malvisto, e isso me dá uma pena enorme."
O caminho para mudar a situação, ela afirma, nunca esteve no impeachment de Bolsonaro --sem avançar no Congresso, mais de 140 pedidos do tipo já foram apresentados ao presidente da Câmara, deputado Arthur Lira (PP). Para Fafá, tirar o presidente criaria uma falsa impressão de retorno à estabilidade democrática. "Acho que esse é o grande nó: não se trata da facilidade de poder tirar, mas da tarefa de colocar alguém que ouça a gente. Estudar o perfil do candidato."
E, então, viria o segundo desafio: romper com a polarização que mina os debates sobre a essência da política. Fafá diz que sempre teve um exemplo de zelo pelo diálogo dentro de casa, o que também ajuda a entender de onde veio o interesse da artista por política.
Com uma mãe do PSD (Partido Social Democrático) e um pai ligado à UDN (União Democrática Nacional), o seio familiar via florescer o debate político --"o pau comia, mas não havia ódio".
A efervescência política também estava a alguns quilômetros de casa. Como consolidou-se perto do rio Araguaia, a família viu muitos jovens se somarem à guerrilha de mesmo nome que enfrentou a ditadura militar brasileira. Fafá era jovem, mas se lembra de colegas que, de repente, deixavam o convívio local para se somar aos guerrilheiros.
Diante do impasse na democracia do país, ela busca na experiência das Diretas lições a se tirar para impedir que a política nacional siga como o que a cantora descreve como um saco de gatos. Sair do eixo São Paulo-Rio, desengessando um olhar hoje voltado para o Sudeste, é essencial. "O Brasil só será essa potência quando brasileiros do Sudeste, especialmente, entenderem que há outros Brasis fora dali."

