RIO DE JANEIRO, RJ (FOLHAPRESS) - O médico perguntou o que Bruno Santos de Oliveira seria quando crescesse. O menino respondeu que queria ser diplomata e ouviu: "Não vai ser isso, não. Ninguém vai aceitar você no Itamaraty".

Oliveira cresceu, estudou direito e relações internacionais e, após duas tentativas, contrariou a previsão: foi aprovado em 2007 no concurso do Instituto Rio Branco e hoje, aos 42 anos, engrossa o número de pessoas negras na diplomacia brasileira, carreira ainda majoritariamente branca.

"Houve avanços. Hoje, consigo andar nos corredores e ver pessoas como eu. Mas o número ainda é pequeno", diz. "Nós somos mais de 50% da população e estamos muito longe disso no Itamaraty."

Oficialmente, o Ministério das Relações Exteriores não tem informações sobre o perfil racial dos diplomatas no país. Levantamento do Ipea (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada), porém, permite uma dimensão aproximada da situação. Em 2020, 11,7% desses profissionais se declaravam negros, enquanto 58,2% diziam ser brancos --e o quadro tem uma lacuna grande, dado que 28,2% não informaram a classificação racial.

Para Oliveira, ser negro em uma profissão pouco diversa impõe desafios, e o maior deles é ter que provar competência acima da média para ocupar espaços de poder. "É algo que existe dentro e fora do Itamaraty, não é exclusivo da instituição. Trata-se de uma marca do nosso racismo estrutural."

A diplomata Paula Gomes, 42, relata que servidores do órgão já acharam várias vezes que ela fosse funcionária de uma embaixada africana.

"Essas pessoas e o Itamaraty não pairam sobre a sociedade brasileira, são parte dela. E a sociedade brasileira é racista", diz. "Ela espera que quem ocupa posições de alguma projeção sejam pessoas brancas, não uma mulher negra."

Ainda que nunca tenha havido uma proibição formal à entrada de negros no Itamaraty, a socióloga Karla Gobo, que estuda a presença desse grupo na diplomacia brasileira, ressalta que a instituição sempre foi um lugar de difícil acesso para essa parcela da população.

"No império, havia a ideia de que a imagem do Brasil deveria representar uma elite europeia e, portanto, branca", diz. Nesse período, a seleção dos diplomatas se dava de forma personalista: "Eram selecionados os que estavam próximos à Corte".

A partir de 1946, a entrada na carreira passou a se dar mediante concurso público realizado pelo Instituto Rio Branco, mas, na prática, pouca coisa mudou. "As provas acabam selecionando o que um embaixador já se referiu como 'a elite da elite'", afirma. "E a elite da elite no Brasil é branca." Só em 1961 o país teve seu primeiro embaixador negro em outro país --Raymundo Souza Dantas, indicado para o posto em Gana. E levaria mais 49 anos para o órgão ter seu primeiro embaixador de carreira negro, Benedicto Fonseca Filho.

Tido como um dos mais difíceis e competitivos do país, o concurso do Rio Branco tem hoje três etapas, nas quais são exigidos conhecimentos que vão de história mundial a política internacional. Gobo destaca a prova de inglês como um dos principais entraves ao ingresso de pessoas negras --algo semelhante ao que ocorre com alunos de escola pública no Exame Nacional do Ensino Médio.

"Muitas vezes, elas conseguem boas notas nas outras provas, mas o inglês é um gargalo."

O diplomata Jackson Lima, 51, destaca outras barreiras simbólicas, que vão além da seleção para o Rio Branco. "Eu não cresci vendo diplomatas negros, então a desconstrução interna, de entender que a gente pode realmente chegar lá é o primeiro grande desafio", conta.

Nascido na Bahia, ele trabalhou como ajudante de pedreiro e camelô, mas sempre quis ser diplomata. Como não tinha recursos para custear os estudos, deixou o desejo de lado. "Vinte anos depois, descobri as ações afirmativas e decidi tirar o sonho da gaveta."

O Itamaraty tem, desde 2002, um programa de ação afirmativa que concede bolsas para custear os estudos de candidatos negros. "Isso foi a pedra angular para minha aprovação. Sem ela, teria sido impossível passar", diz Lima.

Das 789 pessoas que entraram no Itamaraty entre 2002 e 2014, 20 foram negros contemplados pelas bolsas (2,5% do total). Já entre 2014 e 2020, ingressaram no corpo diplomático 127 pessoas, das quais 27 por meio das cotas raciais (elevando a proporção para 21,3%).

Hoje, Lima é uma das três pessoas negras que representam o Brasil em Washington --na primeira vez que o Itamaraty tem um trio de diplomatas negros na capital americana. "É um orgulho e uma responsabilidade muito grande", diz ele, que atua na missão do Brasil junto à OEA (Organização dos Estados Americanos).

Para a diplomata Rafaela Seixas, 34, a ação afirmativa também foi crucial. Com o dinheiro da bolsa, ela conseguiu fazer parte da preparação em um cursinho considerado de elite --no qual, porém, ela diz que não se sentia acolhida. "Quando eu chegava, algumas pessoas me olhavam estranho, como quem diz: 'Essa menina é louca? Esse concurso não é para ela'."

A profissional também relata situações de preconceito velado no trabalho. Ao ser apresentada a uma servidora do Itamaraty, ela conta ter ouvido: "Seja bem-vinda. Sabia que tinha outra Rafaela aqui? Só que ela não era tão moreninha igual a você". Apesar dos problemas, diz trabalhar por uma diplomacia mais diversa. "Em uma instituição que tem pessoas muito iguais, acho importante a gente ocupar esses espaços", diz Seixas. "Se é o brasileiro que paga nosso salário, é uma questão de justiça que esse povo esteja representado na alta burocracia."

Procurado pela reportagem para falar sobre os casos de preconceito relatados, o Ministério das Relações Exteriores diz que condena qualquer forma de discriminação ou preconceito de raça, cor ou etnia. A pasta afirma que instituiu em 2017 a CPADIS (Comissão de Prevenção e Enfrentamento do Assédio Moral, Sexual e da Discriminação). Segundo o MRE, o órgão mantém reuniões periódicas para tratar de casos de assédio e discriminação.

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