FOLHAPRESS - Depois de se recuperar dos três tiros na barriga que levou de Valerie Solanas, em 1968, até sua morte, em 1987, por complicações de uma cirurgia na vesícula, Andy Warhol ditou para a amiga Pat Hackett, por telefone, todas as manhãs, o que se passava em sua vida e em sua cabeça.

Em 1989, Hackett publicou "Diários de Andy Warhol", em versão editada, um tijolão de mais de 1.200 páginas em que o artista falava livremente tanto sobre coisas comezinhas, como fofocas de amigos ou comentários maldosos sobre artistas quanto sobre seu trabalho autoral e suas angústias mais profundas.

Esses diários ganham agora uma versão audiovisual extremamente bem cuidada, com o mesmo nome do livro, lançada pela Netflix. A minissérie documental tem seis episódios, com duração de 50 a 80 minutos cada um. Dirigida e roteirizada por Andrew Rossi, do incrível "Primeira Página: Por Dentro do New York Times", de 2011, e produzida por Ryan Murphy -de "Glee", "Pose", "American Crime Story" e "Halston", entre outros--, é um mergulho e uma viagem no universo de Andy Warhol, um dos artistas mais famosos e ao mesmo tempo incompreendidos do século 20.

Com muitas cenas inéditas, algumas reencenadas, entrevistas com personagens da época e a narração em off recriada com a voz de Warhol, a minissérie proporciona uma imersão no universo particular, meticulosamente fabricado pelo artista.

Numa das passagens mais curiosas, Warhol vai à festa de aniversário de Sean Lennon, filho de John Lennon e Yoko Ono, ainda uma criança de menos de dez anos. Chegando ao apartamento, no famoso edifício Dakota, Warhol vê -e o telespectador também, está tudo gravado- um jovem instalando um computador que deu de presente para o garoto. Era um Macintosh. Warhol comenta que tem alguém ligando para ele toda hora dizendo que quer entregar um Macintosh de presente, e o jovem diz "sou eu". Era Steve Jobs.

A intimidade do artista também é revelada, e suas três grandes histórias de amor aparecem com bastantes detalhes. Cada uma rende um episódio inteiro. A primeira, com Jed Johnson, um ex-ajudante da Factory que foi designado a morar com Warhol enquanto ele se recuperava da cirurgia provocada pelo ataque a tiros, acabou virando seu relacionamento mais sério, um casamento de mais de uma década.

Quando o romance chegou ao fim, muito por causa da vida noturna pela qual Andy Warhol se deslumbrou nos anos 1970, especialmente as festas do Studio 54, ele diz que não vê mais sentido na vida. Mas logo se apaixona por um executivo do estúdio Paramount, Jon Gould, que hoje em dia seria chamado de mauricinho, daqueles que usam mocassim sem meia e malha nos ombros, com quem vive um romance mais atribulado. Tanto Johnson quanto Gould eram gêmeos, e os irmãos de ambos estão vivos, dão entrevista, e o primeiro nome de ambos é o mesmo, Jay.

O terceiro romance é platônico, mas se transforma em uma colaboração artística ultrafrutífera que beneficia a ambos. É com Jean-Michel Basquiat, morto em 1988, um ex-grafiteiro que foi adotado pelo zeitgeist do começo dos anos 1980, e para quem Warhol foi uma espécie de mentor.

Nascido Andrew Warhola em 1928, em Pittsburgh, no estado americano da Pensilvânia, filho de imigrantes pobres e ultracatólicos do leste europeu, tinha desde cedo horror de sua própria aparência. Pele ruim, nariz batatudo, pouco cabelo e uma total inabilidade de disfarçar sua homossexualidade, além da saúde frágil, faziam do garoto que desenhava bem um alvo fácil dos valentões da escola pública que frequentava.

Depois de se graduar em design numa universidade local, ele se mudou para Nova York, aos 20 anos, e começou a se transformar fisicamente, ao mesmo tempo em que iniciava sua carreira artística vendendo ilustrações para as revistas Vogue, Harper's Bazaar e The New Yorker, além de vitrines para lojas de departamentos e alguma publicidade.

Quando conseguiu emplacar a primeira exposição individual, há 70 anos, com 15 desenhos baseados na obra de Truman Capote, decidiu mudar também seu nome, e passou a assinar Andy Warhol. Para cobrir suas entradas, botou uma peruca branca de corte tigela, e adornou o rosto com óculos de aros pesados.

Mas foi só na década seguinte, os anos 1960, que ele virou um fenômeno. A incorporação da linguagem publicitária em suas pinturas, a mais conhecida delas a reprodução das latas de sopas Campbell's, além dos retratos pintados a partir de fotografias de pessoas que admirava, na grande parte das vezes gente linda, jovem, rica e famosa -como Mick Jagger e Jerry Hall, Marilyn Monroe no auge da beleza, Elizabeth Taylor, Elvis Presley et cetera-, que também podiam ser feitos sob encomenda.

Durante alguns anos, as clientes da loja de departamentos Bergdorf Goodman, a mais sofisticada de Nova York, tinham a opção de consignar um retrato feito por Andy Warhol.

Além disso, foi o criador da Factory, o mix de estúdio de arte e ponto de encontro de todo mundo que importava no underground da época. Além de artistas plásticos, músicos como Lou Reed, Bob Dylan, Mick Jagger e Brian Jones eram frequentadores assíduos do lugar que teve três endereços em Manhattan.

Festas, drogas e sexo faziam parte do DNA da Factory, que também serviu de locação para vários de seus filmes experimentais. Mas Andy Warhol nunca deixou que sua intimidade fosse tornada pública e se apresentava em entrevistas como um ser assexuado, que, em suas próprias palavras "preferia ser uma máquina".

"Diários de Andy Warhol" tem tanto de biografia quanto de anime, tão caleidoscópica foi a breve vida de seu protagonista, morto aos 58 anos, 35 anos atrás. O autor de uma das frases mais repetidas do mundo não viveu para ver sua ousada previsão -quase- se realizar. Mas basta olhar para qualquer lado e confirmar que ela está prestes a acontecer -"no futuro, todo mundo será famoso por 15 minutos". Como diz um artista entrevistado na série, "ele ia adorar o agora".

DIÁRIOS DE ANDY WARHOL

Onde Disponível na Netflix

Classificação 18 anos

Produção EUA, 2022

Direção Andrew Rossi

Avaliação Muito bom