BERTIOGA, SP (FOLHAPRESS) - Depois de anos parado na Justiça, uma construtora levou a cabo o desmatamento de uma área litorânea de mata atlântica em Riviera de São Lourenço, em Bertioga, litoral norte de São Paulo. Apesar de ser um desmate legal, ambientalistas afirmam que o projeto, com mais de 30 anos, é ambientalmente desatualizado, principalmente ao se levar em conta a crise climática.

E a obra não desagrada só ambientalistas. Parte dos moradores da região também não está satisfeita com os planos em curso.

A expansão dos prédios de luxo, com apartamentos que valem milhões de reais, em Riviera de São Lourenço diz respeito, mais especificamente, aos lotes 1 e 9 da propriedade, que tiveram o desmate paralisado em 2016, por liminar da Justiça, e concluído recentemente.

Em abril deste ano, a 4ª turma do Tribunal Regional Federal da 3ª Região confirmou a revogação da liminar que impedia a supressão de vegetação no que será uma nova área de habitações e uma possível futura marina da Riviera. Alguns meses depois, em 9 de agosto, começaram obras nos lotes e, em 21 de setembro, quando a Folha esteve no local, a área já estava sem vegetação.

A visão do desmate, do solo nu e do canteiro de obras com maquinário pesado chama a atenção, inclusive de pessoas que passam pela região, como foi presenciado pela reportagem.

A Sobloco, construtora responsável por Riviera de São Lourenço, porém, destaca que tudo foi feito dentro da legalidade, com estudos de impacto ambiental, conhecimento e autorização da Cetesb (Companhia Ambiental do Estado de São Paulo) e ações de compensação ambiental em outras áreas.

A empresa, questionada pela reportagem, afirma que, antes do desmate, foi feito, a partir de 2005, "um programa de manejo da fauna e flora sem precedentes no Brasil", que teria resultado na translocação de mais de 150 mil espécimes, com classificação e colocação de chips nos animais.

No caso da flora, a construtora afirma, em seu site, que houve resgate e envio de mudas para viveiros "na Riviera que mantêm a memória botânica da região", além de transplante de espécies de médio porte.

Além da vitória recente na Justiça pela derrubada da liminar, o empreendimento já havia sido paralisado outras vezes, desde a década de 1990. "Em todas as ações foram demonstradas com clareza a licitude e a adequação do empreendimento", afirma, em nota, a Sobloco, sobre as questões judiciais mais recentes.

Mesmo com o desmate já realizado, nem toda a pendenga jurídica foi sanada: há ainda uma ação civil pública por dano ambiental proposta pelo MPF (Ministério Público Federal) correndo na 2ª Vara Federal de Santos contra a expansão do empreendimento, que pode ter sua decisão proferida em breve.

Sobre o tema, a Sobloco afirma à Folha que "as empreendedoras investiram milhões de reais na implementação de tais medidas [mitigadoras e compensatórias estabelecidas pelos órgãos ambientais] e na realização de obras de infraestrutura. Consternadas, agora observam a história se repetir, com a propositura de uma nova ação civil pública pretendendo rediscutir questões, ampla e exaustivamente examinadas, e já decididas pelo Judiciário".

Segundo a empresa, "isso caracteriza insegurança jurídica prejudicial ao desenvolvimento do país, quando deveriam ser respeitados aqueles que empreendem com responsabilidade social e ambiental, gerando emprego e renda, dentro das leis vigentes".

Ambientalistas ouvidos pela Folha afirmam que, mesmo com autorizações ambientais em mãos, a instalação de novos empreendimentos conhecidos como "pé na areia", ou seja, com acesso praticamente direto à praia, deveria ser repensada.

Um dos motivos diz respeito às vegetações litorâneas, como as áreas de restinga, que, entre outros serviços ecossistêmicos prestados, têm elevada biodiversidade e ajudam a minimizar a erosão costeira.

"O que adianta a pessoa ter o pé na areia com uma faixa de praia mínima, que não cabe todo mundo do empreendimento", afirma Malu Ribeiro, da SOS Mata Atlântica.

Um exemplo recente dos problemas de prédios muito próximos à praia e a diminuição da faixa de areia ocorreu em Balneário Camboriú, que precisou fazer obras para expandir artificialmente a praia.

Prédios próximos à praia fazem parte do modelo de pensamento de urbanização dos anos 70, diz a especialista da SOS Mata Atlântica. "Essa é uma visão de urbanização para a área costeira que deveria estar ultrapassada. Estamos em um momento de eventos climáticos extremos, maior frequência de ressacas, aumento do nível do mar."

Segundo Ludmila Rattis, pesquisadora do Woodwell Climate Research Center e do Ipam (Instituto de Pesquisa Ambiental da Amazônia), o momento de crise climática faz com que agora seja necessário tentar reverter perdas de resiliência ambiental local e tomar cuidado com as mudanças climáticas locais -causadas por supressões de vegetação, por exemplo.

A pesquisadora é mais uma a alertar para o impacto no empreendimento da subida do nível do mar, apontada já há algum tempo por cientistas e por relatório recente do IPCC (Painel Intergovernamental de Mudança do Clima).

É possível, atualmente, já encontrar vídeos da maré subindo a ponto de atingir áreas residenciais da Riviera.

A construtora foi questionada pela reportagem sobre o planejamento do empreendimento, que teve início na década 1970, e da futura marina frente à crise climática e à subida dos oceanos.

"A Sobloco monitora o perfil da praia de São Lourenço há mais de 20 anos e não foi verificada nenhuma alteração no nível do mar desde então. Eventos extremos de forte ressaca não são exclusivos na praia de São Lourenço", diz a construtora. "Além disso, todos os edifícios da Riviera de São Lourenço possuem sistema de drenagem dos subsolos, que garantem a segurança desses imóveis."

Sobre a futura marina, a Sobloco diz que o projeto está sob a responsabilidade de uma das melhores empresas do mundo e que foram considerados "dados completos de nível do mar (maré), alturas significativas de ondas, períodos e direções de ondas e velocidades e direções das correntes, além de modelagens numéricas aplicáveis para este tipo de empreendimento".

Além de ambientalistas e do MPF, parte dos moradores da região também está insatisfeita com os planos de expansão. Entre os motivos estariam o consequente maior fluxo de pessoas -em uma área já muito procurada em feriados, por exemplo- e o saturamento de serviços na região, além da preocupação de poluição derivada da futura marina.

A insatisfação resultou, inclusive, em uma organização, a SOS Riviera, que, em seu site, afirma que distorções "vêm colocando em risco toda a proposta original de uma comunidade autossustentável e um local onde o bem viver e respeito à natureza e ao meio ambiente faziam parte do contrato".

A SOS Riviera, inclusive, é parte do polo ativo, junto ao MPF, da ação civil pública ainda em curso.

O oceanógrafo Fabrício Gandni, diretor do Instituto Maramar -que fez pareceres técnicos que integram a ação e acompanha há mais de 15 anos a situação de Riviera--, afirma que a área agora desmatada poderia dar origem a um corredor ambiental ligando a praia, passando pela área de restinga e chegando até a Serra do Mar. Ele diz já haver uma maior pressão por recursos pela presença de mais moradores na área.

A possibilidade do maior fluxo de pessoas prejudicar a região ambientalmente e até desvalorizar os imóveis também é apontada por Ribeiro, da SOS Mata Atlântica.

Segunda a especialista, Bertioga tem vantagens ambientais por estar próxima a áreas protegidas e regiões importantes de restingas, fatores que inclusive não possibilitam grandes expansões de infraestrutura ou de adensamento populacional. Assim, frente a outros pontos do litoral paulista, como a Baixada Santista, que tiveram intensa urbanização, Bertioga acaba sendo procurada pelos atrativos ambientais.

Por isso, o ideal para a região seriam modelos de urbanização que preservassem as praias, com utilização de infraestrutura verde. "É importante que a cidade não mate a galinha dos ovos de ouro", diz Ribeiro. "Esse caos da superpopulação flutuante [em finais de semana e feriados] impacta o valor dos empreendimentos. A expansão pode ser um tiro no pé."

A especialista da SOS Mata Atlântica lembra que o estado de São Paulo, perto do desmatamento zero, vem perdendo áreas importantes do bioma com supressão de vegetação autorizada.

Segundo Ribeiro, às vezes o imbróglio judicial acaba se tornando o protagonista, sem a percepção da construtora da necessidade de modernização de projetos. "Às vezes um processo judicial desse acaba se tornando uma questão de honra e teimosia, ao invés de uma questão de negócios", afirma.