PETRÓPOLIS, RJ (FOLHAPRESS) - Uma borboleta voou assim que o corpo de Bento foi encontrado sob a lama. Por alguns segundos, ela pairou sobre o exato ponto onde ele estava, fazendo com que os bombeiros se ajoelhassem. Era azul, assim como a cor que simboliza o autismo.

O transtorno ainda impedia que o menino de 5 anos falasse, mas há pouco tempo havia conseguido chamar o empresário Felipe Ferreira, 40, de "tio". A terceira dose da vacina contra a Covid-19 também permitiu uma festa de aniversário no mês passado, depois de dois anos isolado em casa.

Estava com o pai quando uma avalanche de terra misturada com água invadiu o imóvel, no segundo andar de um predinho em que toda a família morava próximo à rua Teresa. Era o primeiro dia de aula há muito tempo dele e da irmã Sofia, de 1 ano, que dormia no quarto e foi arrastada junto com a mãe.

Bento e Sofia de Freitas Garcia estão entre as 42 crianças e adolescentes que tiveram o futuro interrompido pela tempestade que castigou Petrópolis (RJ) no último dia 15. A chuva teve seu maior volume no fim da tarde, quando muitas delas estavam em casa com mães e avós.

Menores de idade são cerca de um quinto dos ao menos 219 mortos na tragédia achados até sexta (25). Mulheres são maioria. Só a ajudante de cozinha Sara Aparecida Luiz, 40, perdeu quatro: dois filhos e dois sobrinhos.

Agora com ambos os pés enfaixados até a canela, ela conta que nem sentiu a dor dos cortes durante a noite toda em que gritou pelos nomes de Julia, 18, e Anthony, 2, coberta por lama. "A fúria de salvar meus filhos era muito maior", relembra.

Os dois estavam na sala, enquanto ela, a mãe e outra filha de 13 anos estavam na cozinha da casa destruída na Chácara Flora. Todos foram soterrados, mas só o segundo grupo conseguiu ser desenterrado por vizinhos.

Na quinta (24), ela almoçava marmita num colchão da igreja que a abrigou, ao voltar do sepultamento do caçula. "Agora já acabou, né? Consegui fazer o enterrinho deles, o coração deu uma aliviada. Agora é recomeçar", dizia a um amigo com voz calma e olhar vazio, pensando nos outros dois filhos que ficaram.

Toninho era o "prefeito da rua", recorda sorrindo. Cumprimentava todo mundo, estacionava a bicicletinha toda quebrada (não gostava da nova) no meio-fio, buzinava com a boca e manobrava com a mão os carros dos vizinhos. Gostava de batata frita e se animava quando o vendedor de ovo passava.

Já a adolescente Julia "era uma princesa". Se arrumava dos pés à cabeça para tirar selfies e só queria beijar na boca, a mãe ri. Estudiosa e cheia de atitude, ia começar o primeiro ano do ensino médio numa escola municipal e sonhava em ser policial.

Seus sobrinhos Bernardo, 9, e João Vitor Roque da Silva, 11, eram levados e viviam juntos jogando bola na rua. Escutava-se lá de cima a mãe, Ana Júlia, grávida de oito meses de uma menina, gritar por eles. Se foram todos juntos na casa de trás, no mesmo quintal.

"Estou falando assim, mas por dentro estou despedaçada", confidencia Sara. "A perda é ruim, mas a espera é pior ainda. Quando você perde alguém, enterra e acabou. Mas a espera é muito difícil, você não dorme, a qualquer hora podem te dar uma notícia."

Outro que sofreu essa aflição de perto foi Marcos Vinícius Tavares, 26. O motorista de aplicativo diz que cavou sozinho por três dias até que os bombeiros começassem as buscas no pé do Morro da Oficina, na área em que seu filho Davi, 5, foi encoberto por metros de lama junto com a avó, Maria Rosa.

O menino só foi achado oito dias depois porque a mãe, Aline Ezequiel, 31, teve um sonho e avisou que era para procurar naquele lugar. "Todo o tempo meu coração estava avisando que ele estava naquele cantinho, porque ele estava dormindo na sala", afirma, tentando assimilar cada detalhe.

Cerca de um ano antes, então aos 4, Davi também teve um sonho estranho. Sacudiu Aline no meio da noite para contar que viu Jesus: "Um ser grande, outro pequeno, um negócio de soprar e uma luz". "Ele vai vir me buscar e vou morar com ele", anunciou ele, que queria ser pastor.

Na terça-feira da chuva, era para estar na escola que acabava de reabrir, mas Aline não conseguiu comprar a garrafinha, o estojo e o uniforme e deixou para quarta. Ele chorou porque queria ir e arrumou sozinho a mochila. Foi a primeira coisa que a família achou no meio da terra.

O vizinho do andar de cima também foi levado pela avalanche abraçado à filha de um ano. Só nas casas daquela área, foram três avós com três netos, dizem. Davi e Maria Rosa, que não se desgrudavam em vida, seguiram juntos ao Cemitério Municipal de Petrópolis.

Além das crianças que morreram, a tragédia deixou muitas outras traumatizadas. Um outro Davi, de 6 anos, que perdeu os primos Bento e Sofia (do início deste texto), presenciou momentos de terror ilhado no alto dos escombros junto à mãe, a empreendedora Isabela Carvalho, 35.

"Eu gritava pela minha cunhada, e o marido dela que sobreviveu gritava de volta. Pedia para Deus proteger meu filho, e ele pedia por mim. É um sentimento que não dá para explicar, estar com a morte assim pertinho", conta.