GUARULHOS, SP (FOLHAPRESS) - A China não é a única que, em fóruns diplomáticos, vem se abstendo de criticar a ação militar russa na Ucrânia. Quando o Conselho de Segurança das Nações Unidas tentou aprovar resolução para condenar a guerra iniciada por Vladimir Putin, Índia e Emirados Árabes Unidos também se abstiveram, junto com a diplomacia chinesa.

Não é preciso ir muito longe para compreender o que amarra o governo indiano a Moscou: a Rússia é a principal fornecedora de armamentos para a Índia que, mesmo que venha tentando diversificar seu mercado, ainda é dependente dos suprimentos e da cooperação militar russa para modernizar sua antiquada defesa antiaérea.

Segunda maior fornecedora de grandes armas do mundo, atrás apenas dos Estados Unidos, a Rússia foi responsável por 20% das exportações do seguimento de 2016 a 2020, segundo dados do Sipri (Instituto Internacional da Paz de Estocolmo). E a maior fatia -23%- teve como destino a Índia. Na sequência, estão China (18%) e Argélia (15%).

Do outro lado, a Índia também ocupa o segundo lugar de um ranking, mas como segunda maior importadora de grandes armas -o primeiro lugar fica com Arábia Saudita. Nova Déli foi responsável por 9,5% das importações de 2016 a 2020, e metade do montante foi comprada da Rússia. Na sequência, vêm França (18%) e Israel (13%).

É verdade que o governo indiano tentou ampliar sua rede de fornecedores e mitigar a dependência de Moscou -houve queda de 53% das importações indianas da Rússia em comparação com os anos de 2011 a 2015. A isso o Sipri, um dos centros de pesquisa mais renomados no assunto, atribui a retração da participação russa no mercado de armamentos que, de 26%, foi para 20%.

A tentativa, porém, não durou muito, e acordos firmados recentemente entre Moscou e Nova Déli devem levar a um boom das exportações russas nos próximos anos. Em dezembro, Putin e o premiê indiano, Narendra Modi, assinaram um programa de cooperação militar e técnica de longo prazo por um período de 10 anos, de 2021 a 2031.

Modi, até o momento, não condenou as ações de Putin na Ucrânia. Expressou, em comunicado recente, "profunda angústia com a perda de vidas e propriedades devido ao conflito em curso", mas sem pressionar o Kremlin. Também disse estar disposto a "contribuir de quaisquer formas para esforços de paz".

A postura neutra não indica que não existam importantes relações bilaterais indo-ucranianas --muito pelo contrário, aliás.

A Índia foi uma das primeiras nações a reconhecer a independência da Ucrânia, decretada em 1991, após o fim da União Soviética. O país é, segundo informações da chancelaria indiana, o maior destino de exportações ucranianas na região da Ásia-Pacífico e o quinto maior globalmente. Indianos são também um quarto dos 76 mil estudantes estrangeiros na Ucrânia, mostram estimativas oficiais.

Além da cooperação militar, há, ainda, outros fatores que devem ser levados em conta para entender a postura indiana, explica Lía Rodriguez de la Vega, vice-diretora do Comitê de Assuntos Asiáticos do Cari (Conselho Argentino para as Relações Internacionais).

Entram na conta cooperações na área de energia nuclear, com a Rússia construindo um novo reator na usina de Kudankulam, a maior da Índia, e também apoiando a inclusão do país no Grupo de Fornecedores Nucleares, fórum de fornecedores de tecnologia nuclear que procura contribuir para a não proliferação de armas nucleares. Também compõe a equação o fato de o governo de Putin constituir um espaço de diálogo com a China, país com o qual a Índia tem uma relação fragmentada, em especial devido a disputas territoriais.

Também é preciso considerar o modelo de política externa indiano, destaca Rodriguez à Folha. "A Índia tem tentado manter sempre a independência nas relações exteriores. Essa postura foi por muito tempo descrita como de não alinhamento, e hoje como 'multilateral', ou seja, que atende aos interesses nacionais com todos os parceiros, independente de quais sejam eles", explica.

Mesmo antes da invasão da Ucrânia, autoridades russas se manifestaram publicamente sobre a importância da parceria com a Índia, verbalizando o quão central Moscou é para o país. Roman Babushkin, encarregado de negócios russo em Nova Déli, disse a jornais locais esperar que a parceria entre os países "continue no mesmo nível que desfrutamos hoje". "A Rússia é o único país que está compartilhando tecnologias sofisticadas com a Índia", frisou, na semana passada.

A parceria entre Nova Déli e Moscou já chegou a criar rusgas com Washington, outro parceiro indiano importante e um dos principais atores diplomáticos na guerra do Leste Europeu. Especificamente a aquisição de cinco batalhões do avançado sistema antiaéreo russo S-400, com capacidade de enquadrar alvos a até 600 km, levou os EUA a manifestarem descontentamento, ainda em 2019.

Aqui pesa a aliança do chamado Quad, sigla inglesa para Diálogo de Segurança Quadrilateral, grupo formado por EUA, Japão, Austrália e Índia e ressuscitado em 2017 para cercar geopolítica e militarmente a China. Com exceção da Índia, todos os outros têm adotado postura mais dura em relação a Moscou durante a incursão militar em Kiev.

Ao jornal americano The Washington Post, analistas sinalizaram que a postura isenta indiana poderia facilmente desgastar a relação com o governo de Joe Biden. "Se eles [Índia] quiserem manter bons laços não apenas com o Quad, mas com a Europa, essa posição à margem se tornará cada vez mais insustentável", afirmou Derek Grossman, analista de defesa da Rand Corporation, um think tank americano.

Lía Rodriguez de la Vega diverge na análise. Para a especialista argentina, a postura não necessariamente fragmenta a relação com os EUA. "Em primeiro lugar, a abstenção da índia no Conselho de Segurança da ONU era previsível. Além disso, Modi continua tendo diálogo com Putin de maneira que pode servir como um elo em instâncias internacionais que se façam necessárias, além de a Índia continuar sendo um ator importante na região da Ásia-Pacífico."