SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) - Há quase dez anos, o escritor João Paulo Cuenca chegava a Frankfurt, na Alemanha, para participar da maior feira de negócios do mercado de livros do mundo justamente na edição que tinha o Brasil como país homenageado. Com dois livros traduzidos para o alemão à época, ele sabia que teria pela frente uma maratona de debates, coquetéis e festinhas com alguns dos maiores publishers do mercado editorial global.

Tradicionalmente deixada à margem, pouco traduzida e divulgada pelo mundo, a literatura brasileira parecia finalmente ganhar os holofotes e decolar para uma posição de destaque.

Agora, uma década depois, Cuenca olha para aquele momento e constata --foi um "voo de galinha". Na visão do autor, compartilhada por seus pares e agentes do mercado editorial, os escritores brasileiros ainda não são traduzidos, publicados e distribuídos o suficiente no exterior. Quem consegue tal façanha não passa de uma exceção.

Embora reconheça bons frutos daquela feira em outubro de 2013, a agente literária Lucia Riff, que trabalha no ramo há 30 anos, também vê uma falta de continuidade. "O trabalho no exterior é de longo prazo, não é do dia para a noite. Se as relações forem estáveis, tudo fica mais fácil. Não é o caso do Brasil --a cada encontro com os editores estrangeiros, a realidade do país já mudou por completo."

Para compreender os obstáculos que atrapalham os livros brasileiros a conquistar leitores estrangeiros, além do menor prestígio literário da língua portuguesa no mundo, considerada por muitos como o principal entrave para vender as obras nacionais, tanto Cuenca quanto Riff destacam a falta de políticas culturais longevas.

Na visão de Cuenca, esse esforço governamental, que se elevou nos governos do Partido dos Trabalhadores, foi suspenso no mandato de Michel Temer e está em queda livre desde a chegada de Jair Bolsonaro ao poder. "Se não é algo construído por muitas mãos, e com muito auxílio estatal e do corpo diplomático do país no mundo inteiro, é um autor ou outro que consegue", diz ele, que já publicou quatro romances, todos traduzidos e lançados fora do país.

Uma das exceções às quais Cuenca se refere é o escritor Paulo Scott, autor de "Marrom e Amarelo". Publicado em 2019 pela Alfaguara, o livro foi lançado em inglês em janeiro deste ano por uma editora britânica. Além de ter recebido resenhas elogiosas em jornais como The New York Times, The Guardian e Publishers Weekly, a obra concorre agora ao International Booker Prize, o principal prêmio destinado a escritores não anglófonos do mundo.

Ao abrir um exemplar de "Phenotypes" --título em inglês de "Marrom e Amarelo"-- se vê, abaixo da ficha catalográfica, o selo do Ministério do Turismo e da FBN, a Fundação Biblioteca Nacional. A marca indica que a obra foi patrocinada pelo Programa de Apoio à Tradução e à Publicação de Autores Brasileiros no Exterior, que subsidia traduções de obras nacionais junto a editores estrangeiros.

Se em 2013, no auge do programa na última década, ele concedeu 206 bolsas de tradução, em 2015, já no governo Temer, esse número caiu pela metade. Em 2019, o primeiro ano do governo Bolsonaro, foram 53 as bolsas concedidas.

O último edital da FBC contemplou, entre outros, o livro mais recente de Paulo Scott. Para além da bolsa, o escritor atribui parte da boa acolhida fora do país ao tema de sua obra, que aborda sem meias palavras como o racismo agride pessoas negras de tons de pele diferentes.

De fato, no mês passado, os autores Itamar Vieira Junior e Djamila Ribeiro, colunistas deste jornal, foram personagens de reportagem do The New York Times representando um "boom literário" de escritores negros contemporâneos no Brasil.

Ressaltando que não escreveu o livro para exportação, Scott afirma que o leitor estrangeiro pôde compreender a obra de forma menos traumatizada. Aqui, ele argumenta, o mito da democracia racial "nos preserva do que não queremos enxergar". "'Marrom e Amarelo' é o primeiro livro que escancara a questão do colorismo na história do Brasil."

Segundo Fernando Rinaldi, editor da área de direitos autorais da Companhia das Letras, "quando um autor se insere no espírito do tempo, ele acaba criando pontes para ser lido em outros países". Isso não se limita à questão do racismo, mas também a temas como a questão ambiental ou indígena. Ele lembra o livro "Ideias para Adiar o Fim do Mundo", do líder indígena Ailton Krenak, que foi vendido para editoras de 12 países.

Ainda que certos números sejam animadores, as perspectivas continuam modestas, e não só para autores brasileiros, já que mesmo mercados vultosos e pretensamente cosmopolitas, como o americano, não deixam de ter uma boa dose de provincianismo.

Só 3% de todos os livros publicados nos Estado Unidos são traduções, segundo o projeto Three Percent, vinculado à Universidade de Rochester, que divulga as literaturas de outras línguas no país. Quem lembrou o número foi José Luiz Passos, escritor e professor de literatura brasileira na Universidade da Califórnia. De acordo com ele, ao menos no mercado americano, o livro do autor brasileiro de ficção literária sempre terá um público restrito.

"Sabe qual o último livro que comprei?", Passos interrompe a entrevista para perguntar, e mostra um catatau da autora polonesa Olga Tokarczuk, "The Books of Jacob", que ele define como fantástico.

Ele abre o exemplar em frente à câmera, mostra o selo do programa de apoio à tradução polonês e faz uma pergunta. "Se o livro de uma autora vencedora do Nobel, para ser traduzido para o inglês pela maior editora do mundo, precisou de incentivo do governo, como um autor nacional brasileiro pode competir nesse mercado?"

O professor critica, porém, quem enxerga nos livros nacionais só o seu potencial de mercado. A tradução, ele diz, "precisa ser tomada como um processo de comunicação, e não como um fenômeno de mercado, como se o livro fosse uma latinha de feijão".

Nesse sentido, o próprio fato de um livro transmitir a cultura brasileira a outro país já justifica sua presença fora. "Essa polonesa vai de certa forma me influenciar, mesmo eu não sabendo ler a língua dela", afirma Passos, se referindo ao livro que tem nas mãos.

"E eu gostaria que alguém na Polônia um dia dissesse a mesma coisa sobre um livro brasileiro. 'Vou ler essa tal Clarice Lispector, mesmo sem ter a menor ideia de como ela fala'."