SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) - A concentração de usuários de drogas deixou de ocupar o entorno da praça Júlio Prestes, na região central de São Paulo, e se mudou para a praça Princesa Isabel, a poucos metros dali. A troca foi feita após ordem do crime organizado para que a multidão saísse das ruas que antes formavam a cracolândia, de acordo com a polícia.

Há divergências, contudo, entre versões da polícia, da prefeitura e de integrantes de movimentos sociais sobre o que motivou a mudança.

Ao menos um terço do fluxo se mudou para a praça, segundo o delegado da 1ª Delegacia Seccional do Centro, Roberto Monteiro —o que representa cerca de 200 pessoas.

"O resto se espalhou pelas ruas do centro e para o trecho entre as avenidas Paulista e Doutor Arnaldo", diz.

A saída do fluxo do entorno da praça Júlio Prestes na madrugada de sexta-feira (18) pegou muita gente de surpresa. Uma comerciante da alameda Dino Bueno conta que chegou para trabalhar no sábado (19) e simplesmente não viu mais os usuários de drogas.

Percepção semelhante teve a dona de casa Ondina Soraia, 61, que passa os dias de semana na casa da filha, um apartamento no primeiro andar de um dos conjuntos populares recém-construídos no entorno da cracolândia.

"De repente foi todo mundo embora. Saí de casa e me perguntei: 'Cadê'?'. Não entendi nada", diz a dona de casa.

A maior parte dos dependentes químicos que ocupa agora a praça Princesa Isabel afirma que deixou a cracolândia na madrugada da sexta devido a um "salve geral dos irmãos", como se referem às ordens da cúpula da facção criminosa PCC (Primeiro Comando da Capital).

O "salve" foi para todos deixarem a praça Júlio Prestes. Não foram dadas explicações, segundo contam.

Integrantes da ONG da Pedra para a Rocha, que distribuem sanduíches na hora do almoço, improvisaram recipientes de metal para levar a comida até a praça Princesa Isabel nesta terça (22).

O padre Júlio Lancellotti, da Pastoral do Povo de Rua, disse que dobrou a quantidade de marmitas distribuídas na mesma praça nesta terça. "A mudança não é resultado de políticas sociais. Ainda é nebulosa a causa que levou a cracolândia a mudar de lugar", afirma.

Na manhã seguinte à dispersão, o governador João Doria (PSDB) esteve na cracolândia para anunciar a abertura do edital que escolherá a organização social para gerir o hospital Pérola Byington, em fase final de construção na alameda Glete.

A previsão é que os atendimentos comecem no segundo semestre, mas a parte administrativa começará a ocupar o prédio até o fim de abril.

De acordo com o delegado Monteiro, a saída ordenada dos usuários de drogas da praça Júlio Prestes é a prova de que a cracolândia tem dono, no caso, a facção criminosa PCC. "Não se trata apenas de uma aglomeração desordenada de dependentes químicos. Eles são usados pelos criminosos como massa de manobra para defender interesses do tráfico", diz.

A prefeitura afirma que a dispersão da cracolândia ocorreu de forma pacífica. Não houve "nenhum tipo de negociação com o crime organizado", diz o secretário-executivo municipal de Projetos Estratégicos, Alexis Vargas.

O secretário atribui a mudança da cracolândia às prisões feitas desde junho do ano passado, quando foi deflagrada a operação Caronte na cracolândia.

Segundo a Polícia Civil, 92 pessoas foram presas sob suspeita de tráfico de drogas até o momento. "As prisões ocorreram em todos os níveis do tráfico. Ficou mais difícil chegar droga na cracolândia, e os preços subiram", afirma Vargas.

A interdição de hotéis que, segundo a polícia, eram usados pelos traficantes para esconder as drogas e receber "clientes VIPs" é outro fator apontado pelo delegado Monteiro para explicar a saída do fluxo. Os imóveis foram desocupados e emparedados pela prefeitura sob ordem da Polícia Civil. "A área se tornou imprópria para a ação dos traficantes", diz.

Outro fator para a movimentação da cracolândia seriam as obras de recapeamento que estão sendo feitas pela prefeitura na alameda Cleveland, onde ficavam as barracas usadas por traficantes para vender drogas. A via está tomada por caminhões e máquinas pesadas.

Segundo funcionários ouvidos pela reportagem, a equipe tem prazo até o fim desta semana para terminar as obras, o que exigiu trabalhos no período da noite, quando há maior concentração de usuários no local.

Há ainda frequentadores que dizem que a ocupação da praça Princesa Isabel foi uma forma de evitar as abordagens de oficiais da Iope (Inspetoria Regional de Operações Especiais da Guarda Civil Metropolitana), descritas por eles como violentas.

Ao menos duas vezes por dia a Iope trabalha com as equipes de limpeza da prefeitura para viabilizar a retirada do lixo na cracolândia. Para isso, os oficiais obrigam os usuários a liberar as vias e muitas vezes há confrontos.

Para o padre Lancellotti, a "estratégia do sufoco" usada pela polícia e pela prefeitura não resolve o problema da cracolândia. "As pessoas sempre vão para algum lugar, não somem simplesmente."

O clima tem sido de tensão crescente na praça Princesa Isabel, segundo Lancellotti, devido à divisão de território por grupos com perfis diferentes.

O endereço é ocupado na maior parte por famílias de sem-teto que perderam a renda durante a pandemia —e agora temem pela segurança do local. Nesta terça, a reportagem contou ao menos 50 tendas montadas. A parte central, mais longe do olhar de curiosos e da polícia, é ocupada pelo tráfico de drogas debaixo de lonas pretas.

De acordo com o secretário Vargas, a prefeitura mantém o projeto de revitalizar a praça. Ele nega que o local tenha se tornado o novo destino dos usuários de drogas da cracolândia.

Por outro lado, entre os moradores dos conjuntos habitacionais no entorno da praça Júlio Prestes, a sensação é de alívio. Os vizinhos têm organizado manifestações diárias para impedir o retorno dos usuários de drogas.

Na noite de segunda-feira (21), imagens das câmeras de segurança da prefeitura mostravam moradores de prédios cantando e comemorando na praça da rua Cleveland, antes tomada por barracas de traficantes. Caminhões da prefeitura jogavam jatos de água para fazer a limpeza da via.

Soraia comemorou poder deixar o neto na van da escola sem precisar sair da frente do prédio. "Quando tinha confronto, eu precisava andar com ele até a avenida Duque de Caxias porque a van não vinha até aqui", conta.

Também ficaram mais fáceis as chamadas de Uber. "[Antes] minha filha precisou ser escoltada pela GCM [Guarda Civil Metropolitana] para pegar o Uber para levar o filho doente de madrugada no hospital", lembra.

Ela conta também que morar dentro da cracolândia por dois anos fez com que os netos se acostumassem com o barulho das bombas, usadas pela polícia para dispersar os usuários. "Brincamos com eles que são para comemorar o gol do Corinthians."

O fim da cracolândia chegou a ser anunciado pelo então prefeito de São Paulo João Doria, em maio de 2017, após ação policial que desmantelou a feira de drogas que ocorria a céu aberto.

Os usuários de drogas passaram alguns dias aglomerados na praça Princesa Isabel e voltaram a ocupar as ruas no entorno da praça Júlio Prestes logo depois.