Cracolândia em SP vive mais tensão com a polícia na pandemia
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terça-feira, 15 de junho de 2021
THAIZA PAULUZE
SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) - Quinta-feira, 10 de junho. Um homem maltrapilho caminha da estação da Luz em direção ao fluxo da cracolândia, na alameda Cleveland, região central de São Paulo. Na esquina, quatro guardas-civis metropolitanos o detêm e o derrubam. Dois o seguram no chão, com a barriga colada no asfalto. Um deles força o joelho contra a parte de trás de seu pescoço. A cena remete ao caso George Floyd, nos EUA, mas não termina em morte.
A violência da ação contra o suspeito de furto irrita os dependentes químicos, enquanto guardas cercam o local munidos de revólveres e bombas de gás. O clima tenso entre os frequentadores da cracolândia e as forças de segurança não é caso isolado. Tem sido constante nos últimos meses, especialmente durante a limpeza das ruas.
A truculência dos agentes levou a Promotoria dos Direitos Humanos a abrir uma ação civil pública para tentar impedir a atuação da GCM como força policial na cracolândia.
No meio da pandemia, esse não é o único problema para os usuários de drogas da região. Eles viram diminuir a ajuda de voluntários e as doações de itens básicos. Em parte por causa do coronavírus, em parte por receio da própria truculência policial.
O que não diminui são os números da cracolândia. Passam por ali 2.000 pessoas diariamente, quase a mesma quantidade estimada em 2012. A diferença é que, agora, o total é aferido por um drone.
Mais recentemente, a tensão maior é entre os traficantes e a Polícia Civil. Segundo relatos, policiais corruptos têm aumentado o achaque aos criminosos, ligados ao PCC (Primeiro Comando da Capital).
Teria sido esse o motivo dos disparos contra uma viatura no dia 3 de junho, feriado de Corpus Christi. Recebidos com tiros e pedras, os agentes pediram reforço da GCM e da PM. A ação terminou com fechamento de um terminal de ônibus e o desvio de 28 linhas do transporte coletivo.
A contradição é visível: o policiamento constante e ostensivo não inibe ações criminosas nem a sensação de insegurança de comerciantes, moradores e transeuntes.
Procurada, a Secretaria da Segurança Pública, sob gestão de João Doria (PSDB), não respondeu aos questionamentos da reportagem.
Usuários de drogas também relatam aumento da pressão para deixarem o local por causa das obras feitas no entorno do projeto de revitalização da Luz. Por lá, foram erguidos prédios em uma parceria público-privada de habitação popular, e está em obras a nova sede do hospital Pérola Byington.
Antigos albergues que serviam de moradia para parte dos frequentadores da cracolândia foram desapropriados e concretados, e devem ser demolidos. O serviço municipal mais próximo dos usuários, que ficava na rua Helvétia, chamado de Atende 2, foi fechado e derrubado no início da pandemia.
Houve também uma debandada do voluntarismo, conta o pastor Rica, do projeto Da Pedra para a Rocha. Durante a pandemia, ele diz que tirou 500 pessoas do vício, distribuiu 2,2 milhões de refeições e 50 mil máscaras.
"Caíram as doações, mas na cracolândia não existe Covid-19, as pessoas seguem lá. Doenças comuns, como tuberculose e pneumonia, têm sintomas como do coronavírus e ninguém queria chegar perto. Sem o serviço municipal, faltou o saneamento básico. Vi pessoas bebendo água de córrego, tomando banho em poça de água. Minha caminhonete virou Samu inúmeras vezes", conta.
Ele diz que sofre pressão e que já ameaçaram fechar o projeto. "Tentam nos associar ao tráfico, mas eu não sou do crime nem da polícia, eu estou lá para ajudar, seja quem for. Não quero saber de antecedente criminal", afirma.
Outra voluntária que já foi pressionada dessa forma é a produtora Giulia Grillo. "Os moradores do prédio me chamam de 'madrinha do tráfico'. Vieram me perguntar quanto eu estava ganhando, me acusaram de defender os traficantes", conta. No ano passado, guardas-civis também a levaram para a delegacia para que explicasse sua relação com o crime organizado.
"Tentaram, fizeram de tudo para me associar ao tráfico, mas não conseguiram", diz ela, que também viu as doações caírem por lá.
"Quando começou a pandemia, praticamente todos se afastaram. Na primeira semana de lockdown, vi o Pastor do Pão distribuir pão duro em fatias", conta, sobre outro voluntário que está sendo ameaçado por filmar ações da polícia.
Para a psicóloga Beatris Dotta, que pesquisa a região, "é um momento tenso, como se todo mundo fosse suspeito. Estão só esperando um fósforo para riscar". Na sua opinião, a diminuição do atendimento público gerou ainda mais vulnerabilidade.
"As operações diárias estão mais agressivas e as pessoas mais expostas a condições indignas. Isso vai retroalimentando o ciclo de violência", diz.
Segundo o promotor de Justiça de Direitos Humanos Eduardo Ferreira Valerio, um dos que assinam a ação civil pública contra a atuação da GCM na cracolândia, a tensão oscila. "Agora começou a piorar, mas enquanto não houver solução estrutural, uma política pública com início, meio e fim, vai ser assim", afirma.
Na última década, foram vários projetos para a região com diferentes abordagens: "Nova Luz", "Braços Abertos", "Redenção", "Redenção Fase II" e "Redenção Fase III". Sem continuidade entre eles, foram pouco eficientes, o que, segundo o MP, é uma "tentativa e erro com seres humanos e gasto de dinheiro público".
"Vimos que ela [a GCM] não age só quando é provocada, mas também provoca conflitos e usa estratégia militar de conquista de espaço urbano, como se fosse uma guerra. Um claro desvio de finalidade", afirma o promotor.
Procurada, a Prefeitura de São Paulo, sob gestão de Ricardo Nunes (MDB), afirmou que atua na região da Luz com abordagem multidisciplinar aos usuários de drogas.
Segundo a gestão, a unidade do Atende 2 foi fechada porque o projeto está em processo de transformação para equipamentos do Siat 2 (Serviço de Acolhida Terapêutica). O espaço da rua Helvétia, no meio da cracolândia, foi transferido para o Glicério, a 2,5 quilômetros dali. No local original, será construído mais um prédio de moradia social da parceria público-privada.
A gestão informa também que distribui na região da Luz mil refeições diárias (500 almoços e 500 jantares), que foi instalado um banheiro na praça Júlio Prestes, e que realiza abordagens diárias aos usuários com seis equipes compostas de médicos, enfermeiros, assistentes sociais e psicólogos.
A Secretaria Municipal de Segurança Urbana informou que a GCM está presente na região "apoiando as ações das demais políticas públicas, protegendo agentes e equipamentos públicos, auxiliando no policiamento comunitário e preventivo, exclusivamente". Também disse que não foi notificada sobre a ação civil pública do MP.

