SÃO PAULO, SP (UOL/FOLHAPRESS) - Elza Soares —que morreu hoje aos 91 anos— concedeu sua última entrevista ao site UOL em junho de 2020, quando se preparava para fazer sua primeira e aguardada live, sensação do início da pandemia.

No papo com o jornalista Leonardo Rodrigues, a cantora falou sobre suas várias datas de nascimento, racismo, aposentadoria (o que nunca aconteceu), novos talentos da música e, principalmente, sobre seus sonhos, que nunca cessaram.

Leia a entrevista na íntegra:

Elza Soares tem várias datas de nascimento. E não adianta perguntar qual é a correta. Nem ela sabe. Nos documentos, nasceu há exatos 90 anos, em 23 de junho de 1930. Mas esse dia e esse mês se referem à emancipação da cantora, usada para poder se casar pela primeira vez, forçadamente, aos 13 anos de idade. A data correta seria 22 de julho de 1933... ou 1937. Não há registro.

O fato é que pouco importa. Elza —insira aqui a idade— é hoje um monumento da cultura brasileira. Símbolo da militância racial, das questões gênero e de um país rasgado pelo machismo e outras ranhuras sociais. E nunca é demais enaltecer suas histórias e sua importância na música brasileira, que nos últimos anos vem passando por um bem-vindo processo de redescoberta.

Nós conversamos por mensagem de áudio com ela, que se mostrou cética sobre diversos temas espinhentos. Do racismo estrutural à passagem do bastão de sua música. De uma eventual aposentadoria à mera possibilidade de sonhar. Sobre governo Bolsonaro e o estado do país, preferiu não responder. Não que não imaginemos o que viria.

Em meio ao pessimismo e incertezas advindas da pandemia, Elza "noventona" felizmente ainda é capaz de se dizer feliz. E nós ficamos com ela.

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Pergunta - Como você se sente completando esse novo ciclo? Quais sonhos ainda espera realizar?

Elza Soares - Realizar sonhos é muito difícil. Quando você está vivo, você não realiza. Você sonha. Continuo sonhando. Espero que o Brasil cresça um pouco mais. Que o brasileiro cresça um pouco mais. Para mim, pessoalmente, cada dia é um dia.

Há publicações que registram seu nascimento em 1930, 1933, 1937.... Em que você ano nasceu afinal?

ES - Não sei explicar, não. Seu Avelino, meu pai, já morreu. E só ele saberia disso. Mais ninguém. Eu não sei

O assassinato do George Floyd nos EUA desencadeou a maior onda de protestos contra o racismo em 50 anos. Por que ainda não superamos essa chaga?

ES - Eu acho que ainda vai demorar muito mais. A humanidade está caminhando muito devagar. Passo a passo. Esse caso [do George Floyd] é muito sério. Não é brincadeira. A gente está lidando com uma coisa muito doída. Me machuca muito ver isso. Mas eu sou uma só. Não posso fazer nada. Posso sentir e sofrer

Nos últimos anos, você lançou ótimos discos, abraçados pela crítica e jovens. Voltar a falar com eles era seu objetivo ou aconteceu naturalmente?

ES - Naturalmente, não. Eu acho que a gente tem obrigação de falar com o jovem. Tem obrigação de evoluir. Temos obrigação de saber cada vez mais. Tudo que eu faço é vendo o que está acontecendo em volta de mim. Eu vejo essa juventude órfã. Vejo uma juventude que precisa de carinho, de amor. Que precisa de tudo. Eu estou colaborando com eles o bocadinho que posso

Um exemplo de como seus seguidores mudaram foi o público do seu show no Rock in Rio, um festival tradicionalmente branco. Havia muitas mulheres e mulheres negras, feministas. Você percebe essa mudança?

ES - Percebo completamente. Eu vivo cantando e vigiando o que está acontecendo ao meu redor. Eu vi o público que esteve no Rock in Rio, e isso me deixou muito feliz

Este ano você foi tema de desfile da Mocidade no Rio. Como se sentiu desfilando agora como protagonista?

ES - Eu me senti molhada de chuva. Fiquei feliz pelo desfile. Feliz pela consagração. E feliz pelo público. Só tenho a agradecer mais uma vez

Você enxerga alguém da nova geração que pode passar para frente o seu legado de música e ativismo? Iza? Ludmilla?

ES - Não estou percebendo nada disso. Eu vejo a mocidade continuando no trabalho. Eu acho que eles sabem o caminho que estão caminhando. Eu não sei nada

O que a palavra "aposentadoria" representa para você?

ES - Nem te respondo. Porque não tenho resposta. Acho que aposentar na música é uma loucura. Você canta até o fim. Eu quero que me deixem cantar até o fim, até o fim, até o fim, até o fim (sussurra).

Você já revelou que costuma tomar sol nua no seu apartamento em Copacabana na quarentena. Como está sendo esse período para você?

ES - Essa pandemia é algo inédito no mundo. E estamos atravessando um momento muito difícil. Difícil e cruel. Temos que ter consciência do que está acontecendo. E eu pego sol nua, sim. Estou pegando aqui na minha sala. E me sinto feliz