SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) - O tanzaniano Abdulrazak Gurnah, vencedor do Nobel de Literatura deste ano, é muito pouco conhecido no Brasil —afinal, nunca foi editado no país.

Radicado no Reino Unido, ele é autor de dez romances, publicados de 1987 até o ano passado, que exploram principalmente os efeitos do colonialismo e do desterramento das populações africanas.

"Mais que a migração, o fio condutor da obra de Gurnah é a ideia de viagem, de movimento, de itinerância", afirma Elena Brugioni, professora do Departamento de Teoria Literária da Unicamp que se especializa em literaturas africanas. "Ele faz um exercício de vaivém entre presente e passado para entender como os encontros e desencontros das personagens têm origem em questões históricas."

"É uma forma de desconstruir dicotomias e oposições que foram construídas exatamente pelo imperialismo", afirma a professora. "Escapa a leituras simplistas e a desfechos esperados, complexificando a presença europeia na costa do oceano Índico."

Conheça abaixo suas principais obras.

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'MEMORY OF DEPARTURE' (1987)

O romance de estreia de Gurnah já apresenta os principais temas de sua carreira —um jovem decide escapar da situação de miséria de sua família em meio à independência de seu país, que coloca no poder um novo governo que aumenta as restrições ao estudo. Ele foge para Nairóbi, no Quênia, para morar com um tio rico.

'PARADISE' (1994)

É seu romance mais conhecido, indicado ao prêmio Booker e tido como determinante para a escolha do comitê do Nobel.

A narrativa acompanha o menino Yusuf, filho de um hoteleiro tanzaniano, que é dado por seu pai a um comerciante, Aziz, como contrapartida de uma dívida. As viagens que o garoto faz com Aziz pelo interior do Congo faz com que muitos acadêmicos o comparem a "Coração das Trevas", de Joseph Conrad, mas pelo ponto de vista africano.

Segundo Brugioni, o romance também oferece uma visão afrocêntrica da história , por exemplo, ao explorar os efeitos da Primeira Guerra Mundial no leste da África —onde se pode argumentar que ela foi vencida pelos alemães. "O livro mostra como a grande história tem uma geografia própria", diz.

'ADMIRING SILENCE' (1996)

Um homem que foge da ilha de Zanzibar para a Inglaterra passa a viver com uma mulher, crítica literária, se torna professor e começa a criar sua própria ficção sobre a história de seu país, idealizando a África, mas deixando de ter contato com ela. É um esforço metalinguístico do novo Nobel de Literatura.

'BY THE SEA' (2001)

Este livro chegou a ser traduzido em Portugal, onde ficou com o título "Junto ao Mar". O romance melancólico, uma das obras em que Gurnah inscreve teor mais autobiográfico, mostra sobre pessoas que buscam encontrar estabilidade amorosa em meio à convulsão social da independência.

'DESERTION' (2005)

O elogiado romance intercala dois amores proibidos —o de um explorador inglês que se apaixona pela jovem que cuida de sua recuperação, enquanto ele convalesce numa viagem pela costa leste da África; e o do narrador pela neta dessa enfermeira 50 anos depois. "É basicamente uma história de amor", diz Brugioni, "que também traz a dimensão de viagem dos protagonistas, de um deslocamento não apenas geográfico, mas de entendimentos e culturas".

'THE LAST GIFT' (2011)

Um homem mais velho, Abbas, gosta de reunir sua família numa cidadezinha do Reino Unido para contar histórias. Quando ele tem um problema de saúde, seus parentes percebem que a única história que ele nunca contou é a do que aconteceu com ele antes de migrar para terras britânicas, quando era velejador.

'AFTERLIVES' (2020)

O romance mais recente do escritor ilustra os efeitos da violenta colonização alemã no início do século 20 na Tanganica, hoje Tanzânia, a partir de um mosaico de personagens. Entre eles, estão um soldado treinado pelos alemães que retorna ao vilarejo natal e um jovem que se alista numa milícia local que tem a reputação de infligir crueldades sobre os seus pares africanos.

"Em um mundo que usa as destrutivas erupções de guerras como marcadores da história, Gurnah mostra o conflito global do ponto de vista daqueles que decidiram olhar um para o outro e sobreviver", descreve um crítico do britânico The Guardian.

"Na obra de Gurnah, existem possibilidades de diálogo que vão além da visão da história a partir de um oprimido e um opressor, de alguém bom e mau", afirma Brugioni.