PARATY, RJ (FOLHAPRESS) - Buracos cavados a mando do condomínio Laranjeiras nas proximidades do empreendimento, uma das áreas mais cobiçadas do circuito de luxo da Costa Verde, em Paraty, foram mais um capítulo de brigas na tensa relação entre a administração do local e os vizinhos caiçaras.

A ação, dizem moradores, tinha como objetivo impedir que pessoas estacionassem nas ruas da comunidade de Vila Oratório, que faz fronteira com o empreendimento.

O problema é que trabalhar como flanelinha é uma das fontes de renda para muitos caiçaras e não demorou para que a obra culminasse em uma briga, que terminou em agressão física e processo.

O condomínio nega que o objetivo era prejudicar e diz que a briga foi um caso isolado em que o síndico foi agredido. Além disso, explica que a obra acontecia em uma área que pertence ao empreendimento e que pessoas queriam utilizá-la sem autorização.

O desentendimento entre as comunidades tradicionais e o condomínio se arrasta há pelo menos 40 anos. A relação é marcada por constrangimentos, ameaças, dependência e restrições de passagem.

A área do empreendimento foi comprada por duas multinacionais, a Brascan e a Adela, em 1972. Um ano antes, havia sido criado o Parque Nacional da Serra da Bocaina, área de preservação entre Rio Janeiro e São Paulo.

Na época, a área que corresponde ao luxuoso condomínio fazia parte do parque. Mas isso mudou. Pouco após a compra do terreno, o presidente na época, Emílio Médici, assinou um decreto que excluiu 30 mil hectares da reserva -dentro desta área está o condomínio, que ocupa 1.130 hectares, sendo 80% de matas protegidas.

Quando as incorporadoras chegaram, nos anos 1970, cerca de 20 famílias de caiçaras viviam em casas de sapé. Elas foram transferidas mediante uma indenização para o terreno em frente a uma das entradas do condomínio, criando assim a Vila Oratório. Mas o clima não era pacífico.

Adriana Mattoso, ex-consultora da ONG SOS Mata Atlântica, dirigiu o documentário "Vento Contra" (1981), sobre os conflitos da região. Nele, há relatos de que as empresas ameaçavam e pressionavam os moradores a aceitarem a indenização de 20 mil cruzeiros e uma casa, com o argumento de que suas antigas residências poderiam ser explodidas.

A transferência dos caiçaras deu lugar ao empreendimento que inclui helipontos, campo de golfe, quadras de tênis, iates, lanchas e mansões.

Pelos cálculos de Zuca Monteiro, corretor do condomínio e também condômino, cada lote pode ter até 500 m². O valor dos imóveis vai de R$ 4 milhões a R$ 28 milhões.

Hoje, o maior problema entre os caiçaras é a restrição da passagem. Condôminos, funcionários e moradores da Vila Oratório podem passar no condomínio a pé para acessar as praias. Mas quem vive mais afastado nas praias do Sono e Ponta Negra, cuja principal fonte de renda é o turismo, não.

Estas comunidades dependem da travessia para chegar até o ponto de ônibus.

Para estes caiçaras e turistas só resta pegar uma van que faz o trajeto entre a marina do condomínio e o ponto de ônibus, das 8h às 18h. Para chegar até a van, a maioria faz o trajeto via lanchas, que dura, em média, de 15 a 25 minutos --há também uma trilha, mas o acesso é difícil para quem precisa carregar malas ou compras do mercado.

Os conflitos pioraram no início dos anos 2000. Em 2009, líderes das comunidades fizeram um protesto durante a Flip (Festa Literária Internacional de Paraty). Na época, Chico Buarque endossou a causa.

No mesmo ano, lideranças entraram com um processo na tentativa de resolver esta questão no MPF (Ministério Público Federal). Em 2016, um acordo foi firmado, porém, as comunidades não concordam com o tratado e analisam que ele foi feito de forma arbitrária entre a procuradora da época Monique Cheker, que atuou em Angra dos Reis, e o condomínio.

"Se esse acordo fosse cumprido exatamente como ele foi redigido, os conflitos diminuiriam", afirma Cheker. Ela diz que sugeriu a criação de comissões para o monitoramento das cláusulas.

No acordo, o condomínio se comprometeu a fazer o transporte de passageiros até um cais que fica dentro da propriedade. Porém os problemas não foram cessados e, 11 dias após o acerto, uma moradora da praia do Sono foi processada por andar a pé dentro da área.

Igor Miranda da Silva, o procurador que ocupou o posto de Cheker, pediu anulação do acordo em 2018, sob o entendimento que o mesmo não solucionou o problema social -a ação tramita na Justiça. "Ao invés de auxiliar no cumprimento do acordo, se optou por ajuizar uma nova medida judicial para resolver um conflito que é social", critica Cheker.

Ao menos 24 caiçaras respondem a processos por terem caminhado dentro do condomínio. Jardson dos Santos, liderança comunitária da praia do Sono, tem duas ações, de 2015 e de 2016. Para ele, o processo é uma forma de coação. "É uma liberdade vigiada", define ele. "Teve uma época que revistavam até as bolsas das mulheres", diz.

As associações de moradores agora apostam no diálogo. "Não queremos brigar", diz Cauê Villela, presidente da associação de moradores de Ponta Negra. Ele diz que o único interesse das comunidades com o empreendimento é a passagem. "Eu não quero ir na casa deles. Eu quero ir à cidade comprar mantimento, ir numa consulta médica ou fazer um curso."

"A meu ver, o empreendimento foi construído sem nunca levarem em consideração as outras comunidades", diz Villela. "Grande parte do PIB brasileiro está ali. É uma Beverly Hills de um lado e, do outro, temos famílias que não têm banheiro."

As comunidades sofrem com a falta de estrutura. Há poucos meses chegou a internet na praia em que Cauê vive. A energia elétrica chegou em 2017. "Quando chegou a luz não chegou a energia, chegou a dignidade. Até pouco tempo, a gente nem sequer existia."

Procurado, o condomínio Laranjeiras diz ter consciência do papel de empregador para uma "região carente de oportunidades". Ao todo, o complexo gera 1.300 empregos, sendo 44% destas vagas ocupadas por residentes da APA de Cairuçu (Área de Proteção Ambiental), localizada em Paraty.

Sobre a passagem, o condomínio diz que é uma propriedade privada e, por isso, "não há previsão legal de autorização de ingresso de pessoas não autorizadas". "Suas áreas internas lhe pertencem, tal como se fossem áreas comuns de um edifício de apartamentos", informa.

O empreendimento cita ainda o acordo de 2016 e diz que os horários e características dos veículos de transporte nele firmados são "rigorosamente cumpridos pelo condomínio".

A prefeitura de Paraty diz que, para mediar os conflitos, tem a Subsecretaria de Povos Tradicionais, que faz a interlocução do poder público com as comunidades.

Hoje, existe uma discussão sobre a possibilidade de uma estrada que chegue até a praia do Sono. Há quem enxergue que este seria o facilitador do acesso e cessaria o conflito com o condomínio. Porém, existe o receio de que as praias sofram com uma forte pressão imobiliária.

Para Leila da Conceição, liderança da praia do Sono, a estrada traria riscos para a comunidade. "Ninguém tem estrutura ou dinheiro para concorrer com um cara grande e rico."