Como nasceu o leão do Imposto de Renda, que 'é manso, mas não é bobo'
PUBLICAÇÃO
sábado, 26 de março de 2022
FILIPE ANDRETTA
CURITIBA, PR (FOLHAPRESS) - O culpado pelo Imposto de Renda não é o governo, mas um leão, animal implacável e justo, que ataca apenas quem o desafia. A ideia talvez soe exagerada hoje, mas é o conceito por trás de uma das campanhas mais bem-sucedidas da publicidade brasileira, que consagrou o leão como símbolo da Receita Federal e o fez virar até verbete de dicionário.
Era 1979, e o governo do general João Figueiredo, na ditadura militar, precisava passar uma mensagem: o fisco estava preparado para perseguir os sonegadores do Imposto de Renda. A campanha tinha ainda a missão de explicar como se preenche um formulário longo que chegava pelos Correios.
O que tinha tudo para ser um tédio virou arte nas mãos de Neil Ferreira e José Zaragoza, da agência DPZ, que bolaram o conceito do leão. Ambos, que morreram em 2017, estiveram por trás de outras campanhas premiadas, como o Baixinho da Kaiser e o comercial "Vandalismo" (conhecido como "A morte do orelhão").
"O briefing, resumido, era 'Mais dia, menos dia, o Imposto de Renda vai te encontrar pois já estava equipado para isso' (ia mesmo, estava mesmo)", contou Ferreira no livro "Zaragoza e Amigos - Ideias Premiadas" (2014). "Criamos então um 'culpado', para a ele ser atribuída a mordida que te davam. Da palavra 'mordida', saiu a busca do 'mordedor' e chegamos ao Leão."
A dupla se aliou ao diretor Andés Bukowinski, que conhecia um criador de leões. Gravaram um vídeo que agradou aos burocratas, mas aprovado com ressalva.
Segundo Eliana Ferreira, viúva de Neil, o piloto foi gravado com uma leoa (portanto, sem juba). A falha foi notada por Delfim Netto, homem forte da equipe econômica durante a maior parte do regime militar.
Corrigido o erro, o leão passou a frequentar a casa dos brasileiros em comerciais de TV, rádio, revista e jornal.
"O leão é manso, mas não é bobo", dizia um dos slogans da campanha que começou em 1980 e durou dez anos.
Nas palavras de Neil Ferreira, o leão "está até hoje, mais de 30 anos depois, vivendo de publicidade gratuita nas manchetes dos jornais".
Os criadores exploraram a ideia de que o Imposto de Renda pode ser domado, como um gatinho, mas que a Receita seria uma fera se fosse preciso. "Não deixe o leão pegar no seu pé."
A campanha foi premiada no Fiap (Festival Iberoamericano de Publicidade), mas o que mais orgulhava Neil Ferreira foi outro reconhecimento. O símbolo pegou tanto que, nos dicionários Houaiss e Aurélio, o verbete "leão" traz agora entre seus significados "órgão arrecadador do Imposto de Renda".
Maria Matuck, professora da ESPM (Escola Superior de Propaganda e Marketing), diz que o leão marcou época porque contou com investimento pesado durante uma década e trouxe uma analogia poderosa. "Pegou um elemento de outro cenário, um animal lindo, para falar de algo chato, que é pagar imposto."
Para Matuck, a campanha teria problemas se lançada hoje. Gravações envolvendo leões em cativeiro, amedrontados à base de chicote, já não seriam tão bem recepcionadas diante do avanço no debate sobre direitos dos animais.
Clotilde Perez, professora de publicidade e semiótica na USP (Universidade de São Paulo), afirma que a peça carregou subentendido parte do espírito do governo militar.
"A intenção da campanha era avisar que o leão iria te pegar, uma intimidação. Na época era possível, hoje seria muito pesado. Não era um Estado que se propunha a te proteger, era um Estado ameaçador", diz Perez.
Mais de 40 anos depois, a "mordida" do leão segue firme, especialmente para quem perde o prazo de entregar a declaração do Imposto de Renda ou cai na malha fina e não consegue corrigir nem justificar o erro. No entanto, muita coisa mudou até aqui.
Neste ano, além da declaração entregue pelo computador, por meio do programa do IRPF, o fisco passou a oferecer a declaração pré-preenchida, que já vem com dados prévios enviados pelas empresas e prestadores de serviços.
A novidade está disponível para quem tem conta gov.br prata ou ouro. Além disso, há a possibilidade de preencher o IR em várias plataformas: começar no computador e terminar no celular ou tablet, por exemplo, ou até mesmo fazer o preenchimento online, por meio do e-CAC (Centro de Atendimento Virtual da Receita Federal).
O pagamento da restituição também mudou muito. Ela é depositada, em geral, numa conta bancária. Em 2022, quando se comemora o centenário do Imposto de Renda, houve uma nova mudança: o pagamento da restituição poderá ser feito por meio de Pix.