CIDADE DE LUXEMBURGO (FOLHAPRESS) - Com cerca de 600 mil vidas -número que o Brasil perdeu para a Covid- se faz o país de maior PIB per capita do mundo, onde ônibus e trens são de graça e a campanha do governo contra a pandemia foi feita também em português, idioma de sua maior comunidade imigrante.

Luxemburgo, membro da União Europeia encravado entre Bélgica, Alemanha e França, sustenta uma economia que, dividida entre seus habitantes, equivale a US$ 118.359 (cerca de R$ 635 mil, pelo câmbio atual) per capita, oito vezes o brasileiro.

Com um número de vidas equivalente ao dos mortos no Brasil na pandemia, também se faz um país em que a taxa de óbitos provocados pelo coronavírus é a metade da brasileira: 131/100 mil habitantes.

Em Luxemburgo, nenhuma morte por Covid foi registrada desde 21 de setembro. Desde o começo da pandemia, morreram 832 habitantes, número que o Brasil atinge em dois dias. Na última sexta (1º), havia 18 hospitalizados e oito pacientes em UTI.

Desinfetantes para mão estão na entrada de todas as lojas, restaurantes e hotéis, e o uso de máscara é obrigatório no transporte público e em locais fechados. Nas ruas, ao ar livre, a proteção é usada em geral pelos mais velhos.

Com pouco mais de 600 mil vidas se faz um país em que a crise de saúde foi levada a sério desde o começo, segundo moradores ouvidos pela reportagem. Um sistema de testes gratuitos em massa foi implantado, e pelo correio chegavam folhetos informativos em vários idiomas.

"A ministra da Saúde dava uma entrevista toda quinta para prestar contas das medidas. Era como se fizéssemos parte da decisão", diz a designer Marta Crisóstomo Martins, de 45 anos, 15 deles vividos no grão-ducado.

Portuguesa, Marta mora em Esch-sur-Alzette, a mais lusitana cidade de um país em que 47% da população é imigrante. Segundo maior centro urbano de Luxemburgo, com 36 mil moradores, Esch está nas Terras Vermelhas, região que enriqueceu o grão-ducado com minério de ferro e aço. Nos anos 1960, o setor faturava 80% do valor total das exportações.

Nas décadas seguintes, o país percebeu a mudança de ventos e fez uma transição bem-sucedida de recursos naturais para o setor de serviços, que hoje representa 86% do PIB.

O ferro ganhou nova relevância, arquitetônica, em grandes painéis nas fachadas de empresas financeiras na capital. Com uma população quase igual à de Roraima numa área que é um centésimo da do estado brasileiro, Luxemburgo abriga mais de 150 bancos e é o 23º centro financeiro mais bem ranqueado (entre 161) pelo índice GFCI.

O grão-ducado apostou cedo em integração. Foi membro fundador de várias organizações econômicas internacionais, entre as quais o Benelux, criado em 1944 com a Bélgica e a Holanda.

Foi o núcleo da Comunidade Econômica Europeia (CEE), que depois deu origem à União Europeia, em 1993. Escritórios administrativos do bloco foram abertos no país e políticos luxemburgueses, como Jacques Santer e Jean-Claude Juncker, tiveram papéis centrais na UE.

Além de pagar o maior salário mínimo (2.202 euros, cerca de R$ 13.700) do bloco europeu, Luxemburgo registra a menor discriminação salarial de mulheres. São as luxemburguesas as que ganham valores mais próximos dos homens na UE (desvantagem de 1,3%).

A taxa de desemprego em agosto foi de 5,5%, pouco mais de 16 mil trabalhadores. A renda média mensal por adulto no país é de 6.575 euros (R$ 40.960), e a renda mediana, de 5.454 euros (R$ 33.976), segundo dados nacionais de 2020. Medidas como PIB per capita e mesmo valores médios de renda podem esconder desigualdades imensas, como a brasileira ou a norte-americana. Nesse quesito, Luxemburgo aparece na zona mediana entre 159 países acompanhados pelo Banco Mundial. Seu índice de Gini é 35,4 (quanto mais perto de 0 e longe de 100, menor a desigualdade de renda).

A distância está aumentando, porém, segundo os dados nacionais: a renda dos 10% mais ricos é 9,2 vezes a dos 10% mais pobres; em 2012, era 3,6.

"Há pessoas com imensa riqueza, e há a mulher da limpeza, o trabalhador das obras, que não viverão com tantos luxos e confortos, mas que vivem bem. Conseguem ter suas férias, visitar outros países", diz Isabel Maria Caldas Ritto, 49 anos, dos quais 13 em Luxemburgo.

Com um número de moradores que equivale ao de brasileiros mortos por causa do coronavírus se sustenta um sistema de transferências de renda capaz de reduzir de 46% para 17,5% a fatia de habitantes com renda média inferior a 60% do salário mínimo, considerados em risco de pobreza.

"Um acesso mais ou menos idêntico à educação de qualidade" é outro motivo da menor desigualdade, segundo Isabel, assistente da direção do Tribunal de Justiça Europeu, que fica na capital luxemburguesa.

A cidade, de pouco mais de 110 mil moradores, ocupa um platô escarpado cercado de riachos, com edifícios históricos, prédios modernos e casinhas entre parques e florestas. Turística e sede de muitas multinacionais, é menos germânica e mais calorosa que o norte do país.

Como Bruxelas e Estrasburgo (França), a cidade de Luxemburgo é uma capital da UE e nela há departamentos da Comissão, do Conselho e do Parlamento europeus. Também abriga o Tribunal de Contas da UE e o Banco Europeu de Investimento.

Resumido em uma frase, Luxemburgo é "um país muito rico, muito verde e muito eficiente", diz Isabel. "Há muita confiança de que o dinheiro dos impostos é bem investido. Todas as 102 comunas têm escolas bem equipadas, bibliotecas, piscinas, ruas bem cuidadas", descreve.

Nessa monarquia constitucional com sucessão hereditária, o grão-duque mantém funções institucionais e nomeia o primeiro-ministro. Além de estabilidade política, há sensação de segurança: houve quatro homicídios em 2019, uma taxa de 0,6/100 mil habitantes (no Brasil a taxa fica em torno de 30/100 mil).

"Todos os serviços são excelentes, tudo está perto, a qualidade de vida é muito alta", diz o luxemburguês Jérôme Pero, secretário-geral da Federação Europeia da Indústria de Materiais Esportivos, com sede em Bruxelas. Ele enumera também os pontos negativos de seu país.

"Justamente por ser um país tão rico, Luxemburgo é caro. Alugar ou comprar um apartamento custa quatro vezes mais que na Bélgica, portanto só quem tem salários altos consegue aproveitar a qualidade de vida da capital", afirma.

Dono de um restaurante e de mercearias de artigos poloneses na cidade, Francisco Cardoso, 47, desde os três anos de idade em Luxemburgo, concorda: "Não só as casas, mas a mobília é caríssima. Mesmo com duas pessoas a trabalhar, às vezes não dá".

Por isso, casais com crianças pequenas estão preferindo comprar uma casa com jardim em Esch a ficar num pequeno apartamento em Luxemburgo, afirma Marta.

"Quem trabalha em áreas mais artísticas ganha menos que os funcionários de bancos ou de instituições europeias. Há uma nova tribo cultural se firmando aqui", conta a designer, que menciona a ausência dos mais jovens como uma das fraquezas do país.

Até o começo deste século, não havia universidades em Luxemburgo, o que fazia com que os estudantes saíssem do grão-ducado ao terminar o segundo grau. "Faltava esse frescor da juventude, essa coragem para ousar, inovar", afirma Marta.

Em 2003 foi inaugurada sua primeira universidade, com foco em ciência de materiais, inovação financeira, ciência da computação, tecnologia da informação e cibersegurança. Ainda é um horizonte muito limitado, diz Jérôme Pero, e muitos luxemburgueses preferem partir para cidades europeias maiores e mais vibrantes.

O projeto, de qualquer forma, é de longo prazo: Luxemburgo planeja se tornar polo científico, reduzindo sua dependência do setor financeiro, sob pressão crescente de grandes países europeus, não só pelo regime de sigilo, permitido pela legislação bancária. Com alíquotas corporativas muito mais baixas, o grão-ducado é conhecido como um paraíso fiscal.

Um primeiro passo na aproximação de presente e futuro já foi dado. Seu regime tributário atraiu empresas como IBM, Tata e Amazon -a sexta maior empregadora privada, com 3.280 funcionários. Duas posições acima está a ArcelorMittal, com 3.570.

Segunda maior companhia de aço do mundo, a siderúrgica produziu em 2020 mais de 78,46 milhões de toneladas, parte delas no Brasil, onde se instalou há cem anos, criando em Minas Gerais uma pequena comunidade luxemburguesa.

A partir de 1921, centenas de moradores de Esch, Dudelange e Differdange fundaram no interior de Minas Gerais a cidade de João Molevande, 110 km a leste de Belo Horizonte.

O fluxo foi grande nas décadas de 1930 e 1940 e deixou marcas: alguns ainda falam uma versão do luxemburguês, nomes de imigrantes batizam ruas e alguns restaurantes servem massa com molho de bacon e pescoço de porco fumado com favas -pratos parecidos com os originais "Knidellen mat Speck" e "Judd mat Gaardenbounen"-, conta a luxemburguesa Dominique Santana, 33, a um jornal da comunidade portuguesa no grão-ducado.

Do Brasil, as notícias que chegam hoje a Luxemburgo não são boas. "Vimos pela TV cenas chocantes de brasileiros lutando por cilindros de oxigênio", relata Christian Koepp, 32, funcionário de um banco alemão que opera no país.

No próximo ano, será possível conhecer o país sul-americano sob outro aspecto. A história de João Molevande (MG) virou tese de doutorado e foi transformada em documentário.

"A Colônia Luxemburguesa", como vai se chamar, fará parte da programação da Esch2022 e terá divulgação em todo o continente. Porque, com cerca de 600 mil vidas, mesmo número de brasileiros mortos na pandemia, se faz um país que, no próximo ano, abrigará a capital europeia da cultura.