SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) - A coleção de cartões-postais foi uma paixão de Maria Cecília Monteiro da Silva, que se deliciava, como anotou, em um "saudoso e belo passeio cheio de recordações", sempre que admirava as imagens de cidades, pessoas ou acontecimentos históricos nos retângulos de papelão.

Ela morreu aos 91 anos, em maio de 2020, amargurada com a partida de um de seus filhos por Covid-19 poucos meses antes. Deixou como legado acervo raro de aproximadamente 3.000 postais antigos --desses cerca de 2.400 são de São Paulo e pouco mais da metade (1.560) da capital do estado.

Apaixonada pela cidade, Maria Cecília reuniu material com fotografias, ilustrações e informações que registraram eventos transformadores, como a cerimônia de inauguração do estádio do Pacaembu, em 1940, e o desfile comemorativo do Quarto Centenário de São Paulo, em 1954. Os postais mais antigos trazem fotos de 1897.

Estudiosa da cidade de São Paulo, Maria Cecília considerava seus cartões fontes ricas de informação e motivo para reunir a família e contar histórias.

"Ela conhecia tudo sobre São Paulo. Era uma fonte de história inesgotável", diz Adriana Rezende Yazbek, 47, neta de Maria Cecília. "E a coleção era sua joia, a maior paixão."

O advogado Oscar Yazbek, 54, genro da colecionadora, lembra dos detalhes que ela contava com prazer sobre a cidade, entre eles a localização de nascentes e bicas onde as pessoas buscavam água na década de 1930.

"Ela sabia onde passavam os córregos, como os bairros foram criados e inclusive as casas onde moravam políticos e personalidades. Os cartões traziam recordações", conta Oscar.

Avenida mais conhecida de São Paulo, a Paulista é retratada no início do século 20 com chão de terra batida e a presença de bondes, muitas árvores e nenhum arranha-céu. As mulheres usam luvas e vestidos longos. Os homens vestem paletós, chapéus e se apoiam em bengalas.

No espaço onde hoje se localiza o Masp (Museu de Arte de São Paulo), postais da primeira metade do século 20 mostram o Belvedere Trianon, mirante projetado pelo arquiteto Ramos de Azevedo (1851-1928) com vista para o vale do Anhangabaú. O local servia de espaço para reuniões, homenagens políticas e festas para empresários e familiares da elite paulistana.

Foram quase 40 anos colecionando. Maria Cecília começou com o hobby no início da década de 1980, incentivada pelo marido, João Baptista Monteiro da Silva, que sempre teve o costume de juntar coisas --de selos a canivetes. Ele morreu em 1991, e ela deu continuidade por prazer e também como forma de homenageá-lo.

O acervo foi montado com a compra de cartões em feiras de antiguidade no Brasil e em outros países. "Os cartões, editados no Brasil, saiam daqui porque as pessoas mandavam de presente para familiares ou amigos no exterior. Alguns foram encontrados somente nas feiras internacionais", diz Adriana.

Uma das estratégias de Maria Cecília era adquirir postais raros de outras cidades para trocá-los por cartões que retratavam São Paulo, que eram de seu maior interesse. Nas feiras, as negociações duravam horas.

Para se especializar, Maria Cecília fez cursos de biblioteconomia. Ela também frequentou um clube de cartofilia, que reúne colecionadores de cartões-postais. O arquiteto e urbanista Benedito Lima de Toledo (1934 - 2019), considerado um dos mais importantes historiadores da evolução urbana da cidade de São Paulo, participava do grupo.

Alguns dos cartões de Maria Cecília têm registros dos remetentes. Entre os que ela tinha mais carinho estão os com assinaturas atribuídas a figuras históricas, entre elas a princesa Isabel (1846-1921) e o aviador Santos Dumont (1873-1932).

Embora seja difícil comparar acervos, uma vez que muitas pessoas têm coleções particulares, a quantidade e qualidade dos postais antigos de Maria Cecília tornam seu material raro. "É algo que pode, inclusive, contribuir com a formação de políticas públicas do presente ao relembrar o passado", diz Mário Jorge Pires, membro do Instituto Histórico Geográfico de São Paulo.

"O primeiro passo para a modificação das políticas é a consciência do que éramos e do que somos. É importante relembrarmos que a cidade de São Paulo tinha muito mais árvores e como isso foi se perdendo ao longo dos anos em detrimento de ações que privilegiam o tráfego", diz o pesquisador. Segundo ele, a documentação iconográfica sobre a história arquitetônica de São Paulo é escassa.

O material de Maria Cecília está ainda hoje em álbuns. Seus cartões preferidos eram os de São Paulo, mas nem todos a agradavam. Postais do Instituto Butantan com ilustrações de cobras eram guardados virados por causa do medo que ela sentia dos répteis.

Maria Cecília garimpou seus cartões até 2019, antes da pandemia do coronavírus. Zelosa, ela não gostava que outras pessoas mexessem na sua coleção e sabia de cor onde ficava cada postal. Agora, o acervo está sob cuidados de suas filhas e netos.

Segundo Adriana, a família discute doar ou vender para instituições de pesquisa, mas com a condição de que garantam acesso ao público.

"Já recebemos ofertas de colecionadores particulares. Mas, nesse caso, pouca gente teria acesso ao material. Indo para alguma instituição de pesquisa, mais brasileiros poderão conhecer e resgatar parte da história", diz