SÃO PAULO, SP, E BRASÍLIA, DF (FOLHAPRESS) - Na manhã em que a Rússia invadiu a Ucrânia, na última quinta-feira (24), o celular de Bruna Alves não parou de tocar. Eram casais de várias partes do Brasil querendo saber se seus filhos estão protegidos em meio ao cenário de guerra na capital, Kiev.

Os bebês ainda não nasceram: eles são fruto de barriga de aluguel, prática legalizada na Ucrânia, que se tornou um dos principais destinos para famílias do Brasil e de outros países por ter um preço mais acessível que a média.

Alves é diretora da operação brasileira de uma agência internacional dedicada à gestação de substituição -ou "surrogacy", em inglês. Com sede em Israel, a Tammuz Family atende atualmente mais de 150 casais com processo em andamento na Ucrânia, entre os quais 35 brasileiros.

"Perdi a conta de quantas ligações recebi hoje. Eles estão assustados, querem saber se a clínica está segura, se as gestantes estão seguras, o que vai acontecer com os embriões que estão lá", contou.

A resposta a essa última pergunta veio na manhã seguinte: "Acabei de ser informada que a clínica finalizou o transporte de embriões para um bunker", avisou ela, por mensagem de celular, à reportagem. Caso necessário, há planos de remoção desse material genético até para outros países, acrescentou.

Quem ainda está no início do processo pode optar por transferir o procedimento para outro país, por exemplo a Geórgia. No caso das gestantes de substituição -ou seja, as mulheres ucranianas que já estão grávidas de bebês desses casais-, a agência se ofereceu para transferi-las de Kiev para outra cidade mais segura, na fronteira com a Polônia, junto com seus familiares.

A maioria aceitou, e todas as que carregam filhos de brasileiros já estão fora da capital, afirma Alves. As viagens vêm sendo feitas desde a semana passada. "A sorte é que no caso dos brasileiros não temos ninguém esperando parto para agora. As gestantes estão ainda no primeiro ou no segundo trimestre", diz a diretora.

Alves afirma que a agência já lidou com outras crises, entre elas o fechamento das fronteiras devido à pandemia de Covid-19. "Temos planos de contingência. Mas sabemos que é uma situação muito estressante para os casais."

"As notícias nos preocupam muito. Além de todo o sofrimento das pessoas que vivem lá, tememos pela segurança dos nossos embriões", diz Juliana.

A brasileira, que pediu para não ter o nome verdadeiro revelado, enviou os embriões para a Ucrânia há dois meses. "É um momento delicado, pois ao mesmo tempo em que temos pressa, gostaríamos de ter uma situação pacífica em primeiro lugar."

Autora de um blog sobre reprodução humana, a americana Alison Motluk pesquisou como a indústria de barriga de aluguel tem respondido à guerra e elencou os problemas que podem surgir nessas circunstâncias.

Além do óbvio risco de vida, cortes de energia poderiam danificar embriões e gametas estocados, ciberataques podem derrubar redes de aquecimento ou de internet e gestantes podem ter que ser enviadas para outros países, com leis sobre reprodução humana e registro de crianças diferentes.

A Ucrânia permite a barriga de aluguel apenas para casais heterossexuais oficialmente casados, e é preciso apresentar um laudo médico que ateste a impossibilidade de levar uma gravidez adiante. O preço médio do procedimento é de US$ 50 mil, praticamente a metade do que é pago nos Estados Unidos, por exemplo.

Após o bebê nascer, ele passa pelo teste de DNA para comprovar que as pessoas que contrataram a barriga de aluguel são realmente os pais. É feita, então, a certidão de nascimento ucraniana, e só depois a criança pode receber na embaixada os documentos brasileiros, que lhe permitem viajar.

Brasileiros estão em subsolo de Kiev com uma recém-nascida Reportagens publicadas em países como Austrália, Irlanda e Inglaterra trazem casos de famílias que foram buscar seus bebês na Ucrânia e não conseguem voltar para casa.

Ao menos um casal brasileiro se encontra nessa situação. A técnica judiciária Kelly Wilke, 39, e o marido, Fábio Wilke, 43, estão abrigados com a filha recém-nascida Mikaela no subsolo de um prédio residencial em Kiev, com mais 30 adultos, oito bebês e três crianças de até 3 ano.

A agência que os atendeu, a BioTexCom, mostrou a eles, antes do início da guerra, um bunker que tinha preparado para receber os estrangeiros que estavam no país. Um vídeo postado pela empresa nas redes sociais mostra como é o ambiente, com pilhas de fraldas, comida enlatada, sacos de dormir camuflados e máscaras de gás. "Acho que se pretendiam nos levar para lá o caos se instaurou e os impediu. Mas hoje eu não me arriscaria na rua para chegar lá", diz a brasileira.

O voo de volta dos três, marcado para este domingo (27), foi cancelado. Eles tentaram deixar Kiev por terra, mas não encontraram veículos disponíveis. "Quem te m carro está sem gasolina. A orientação agora é que ninguém saia porque existe a possibilidade de ataques aéreos. O governo ucraniano disse que se alguém do Exército te encontrar na rua, você será considerado inimigo", relata Kelly.

Neste sábado, com combates no centro da capital, a sensação de insegurança aumentou. "Subimos no apartamento para esterilizar as mamadeiras e dar banho na Mikaela. A gente pretendia ficar ali mais um pouco, mas ouvimos as explosões e achamos melhor descer", conta ela.

A embaixada também os orientou a não saírem de onde estão. "Eles falaram que assim que a situação melhorar vão colocar em prática a nossa retirada."

O Itamaraty foi procurado para informar que tipo de assistência tem dado a famílias nessa situação, mas não respondeu até a publicação desta reportagem.

Com passagem comprada para 13 de março, outro casal brasileiro está apreensivo, sem saber se conseguirá embarcar para buscar o filho.

Michele (nome fictício), 38, procurou a barriga de aluguel após não conseguir engravidar em decorrência de um câncer. Ela e o marido estão aflitos porque não conseguem notícias de como está a ucraniana que está gerando o bebê.

"Muitas famílias não sabem como proceder e não estão conseguindo contato com a clínica ou com as mulheres que estão gerando o filho. Os serviços estão comprometidos e os cartórios estão fechados", diz a empresária Camila Pavan Garbelini, 34, que teve a filha Pietra em junho de 2020, na Ucrânia, e hoje dá suporte para outros casais que passam pelo processo.

Apesar de não ter passado por uma guerra, ela também enfrentou barreiras para buscar a filha devido às fronteiras fechadas durante a pandemia. Teve que pedir autorização a três países (Alemanha, Holanda e Ucrânia), além da ajuda do Brasil, para conseguir viajar.

Camila tem uma distrofia muscular que a impede de ter uma gestação completa. "Procuramos adoção e barriga solidária até chegar no único tratamento que realmente trouxe o meu sonho para mim, a barriga de aluguel", conta. "Vi neste processo a minha última chance para me tornar mãe."