SANTIAGO, CHILE (FOLHAPRESS) - É preciso agachar-se para atravessar a porta metálica da pizzaria Fama, no centro da capital chilena.

"Não dá para deixar tudo aberto, porque a bagunça começa rapidamente, e não consigo fechar antes que comecem a entrar pedras ou gás lacrimogêneo", diz o gerente Orlando, 64, enquanto mostra as pichações que cobrem a fachada: "Piñera assassino", "carabineros = nazismo", "liberdade a presos políticos".

No mesmo estado está quase toda a região que circunda a praça Baquedano, hoje apelidada de Dignidad. O lugar foi o epicentro de protestos que eclodiram em outubro de 2019 e continuaram intensos até março do ano seguinte, com um saldo de 34 mortos e mais de 2.000 feridos. Desde então, mesmo com restrições impostas pela pandemia, os atos são realizados todas as sextas, embora com menor intensidade.

Às palavras de ordem pichadas por todo lado somou-se recentemente a poluição visual da campanha da eleição presidencial, que neste domingo (21) terá seu primeiro turno. E não se pode dissociar a história das manifestações da escolha do novo presidente do Chile. Os protestos desembocaram na redação de uma nova Constituição e no desgaste da imagem do atual líder, Sebastián Piñera --envolvido no caso dos Pandora Papers, que rendeu um pedido de impeachment, e em conflitos com indígenas mapuche.

"Aqui perdi meus olhos", diz outra pichação, na entrada de um quiosque que vende doces e cartões telefônicos --uma lembrança das 460 vítimas da repressão que tiveram lesões oculares, segundo levantamento do Instituto Nacional de Direitos Humanos (INDH).

"É melancólico acordar todos os dias para trabalhar, chegar aqui e ler essas palavras, é um pesadelo que não acaba. Queremos um pouco de tranquilidade, seja quem for o novo presidente", diz Rocío, 52, enquanto atende os clientes. As pichações, bem como a ocupação de edifícios antigos no centro de Santiago, contam a história do movimento que deu início às transformações que o Chile vive hoje.

"Até aqui, parecia que vivíamos uma onda progressista, de desconstrução do Chile neoliberal, a caminho de uma sociedade mais justa e inclusiva", afirma a cientista política Claudia Heiss. "Mas agora vemos que um outro Chile está reagindo. O país que não saiu para protestar na praça Dignidad, o que não quer mudanças e que tem medo da desestruturação do sistema que existia antes."

Seis candidatos disputam o direito de comandar o Palácio de La Moneda, sede do governo, a partir de março de 2022. Nenhum deles tem mais de 30% das intenções de voto, segundo as pesquisas mais recentes, o que deve levar a decisão para um segundo turno --a ser disputado em 19 de dezembro.

Esse cenário também tem um grau de incerteza, por dois fatores: 23% dos eleitores ainda se dizem indecisos, e o histórico dos levantamentos desse tipo no Chile abre espaço para algumas surpresas.

De acordo com o instituto Cadem, a corrida é liderada pelo ultradireitista José Antonio Kast, com 25% das intenções de voto. Depois, está o esquerdista Gabriel Boric, com 19%. Na sequência vêm o centro-direitista Franco Parisi (10%), a centro-esquerdista Yasna Provoste (9%) e o governista Sebastián Sichel (8%).

A candidatura de Kast, 55, é a surpresa desta eleição. Há três meses, ele ocupava o quarto lugar nas pesquisas, mas cresceu ao elevar o tom de suas críticas a Piñera e ao adotar o discurso do medo quanto à possibilidade de a esquerda chegar ao poder --àquela altura, Boric era o líder. Com as bandeiras do anticomunismo e do antiglobalismo, propagandeando uma política restritiva em relação à imigração e linha-dura na área de segurança, o nome da direita ganhou espaço.

Esta não é a primeira vez que Kast disputa a Presidência. Em 2017, teve 8% dos votos e ficou de fora do segundo turno. Sua defesa da ditadura liderada por Augusto Pinochet (1973-1990) rende discussões acaloradas nas redes sociais. No último dia 13, afirmou que o regime não poderia ser comparado aos atuais de Cuba e da Venezuela porque no Chile não teria havido perseguição a opositores.

Os fatos não corroboram o discurso: no período ditatorial chileno desapareceram mais de 3.000 pessoas, muitas delas jogadas ao mar ou enterradas no deserto do Atacama.

"Kast responde ao imaginário dos que têm medo do futuro, enquanto a economia e a situação social se mostram mais confusas --com conflitos com os indígenas na região da Araucania, a inflação, a imigração e o aumento da insegurança", diz o economista Claudio Elórtegui, da Pontifícia Universidad Católica de Valparaíso. "Seu discurso ganha força porque dá uma resposta simples e direta de confiança."

Boric também é um fenômeno relativamente novo na política chilena. Deputado de 35 anos, ele integrou o grupo de jovens líderes estudantis que em 2011 protestaram pela educação universitária gratuita.

Embora seu perfil seja o de um esquerdista moderado, ele tem em sua aliança o Partido Comunista do Chile e outras organizações mais radicais. Diferentemente de Kast, defende avanços nas leis de direitos civis, como o aborto e o casamento igualitário. Também se diferencia do nome da ultradireita por ter em seu programa o reconhecimento dos direitos dos povos indígenas, que compõem 9% da população.

Já Sichel e Provoste representam o "mainstream" da política chilena até 2019. O primeiro, ex-ministro de Piñera, é apoiado pelos partidos de direita e centro-direita da coalizão governista Chile Vamos, do qual faz parte a tradicional UDI (União Democrática Independente). A segunda é a candidata da Concertação, força política de centro-esquerda que governou o Chile por mais de 20 anos desde a redemocratização.

"É uma eleição histórica, em que, pela primeira vez, nenhuma das duas forças que dominaram a política chilena estará no páreo. É uma renovação total nesse sentido", afirma o cientista político Cristóbal Belollio. Para o estudioso, porém, é raso afirmar que o país vive uma polarização radical.

"Tanto Kast como Boric, se passarem para o segundo turno, devem dar passos rumo ao centro --ou então não atraem mais votos. Isso vai obrigá-los a moderar posições e forçar um redesenho do mapa político."

Esses novos traços da política chilena também devem deixar marcas na nova composição do Congresso --além de votar para presidente, o pleito servirá para indicar uma nova Câmara e 27 dos 50 senadores. O Parlamento, há poucos dias, viu os deputados aprovarem a abertura de um processo de impeachment contra Piñera, que acabou barrado no Senado.

No Chile, o voto não é obrigatório desde 2012, e as eleições recentes têm visto grande abstenção. Nas últimas regionais, que escolheram governadores, participaram só 20% dos eleitores. Nas presidenciais de 2017, vencidas por Piñera, o índice não chegou a 50%, nem no segundo turno. O plebiscito de outubro, que definiu que o país teria uma nova Constituição, também teve participação baixa, de 50,95% do eleitorado.