BRASÍLIA, DF (FOLHAPRESS) - A Câmara dos Deputados aprovou em dois turnos nesta terça-feira (22) uma PEC (proposta de emenda à Constituição) que transfere terrenos de marinha em áreas urbanas da União para estados e municípios ou para proprietários privados, em texto criticado por integrantes do governo pelo risco de privatizar o litoral brasileiro e abrir brechas para grilagem.

O teor da PEC também é atacado por ambientalistas, que veem ameaça à biodiversidade local. A classe entende que o texto abre margem à criação de praias privadas.

O texto foi aprovado em primeiro turno por 377 votos a 93 -precisava de pelo menos 308 votos. No segundo turno, recebeu 389 votos a favor e 91 contrários. Agora, o texto segue ao Senado, onde precisará de pelo menos 49 votos, também em dois turnos.

O governo já articula uma peregrinação no Senado na tentativa de barrar o avanço da proposta, descrita por técnicos como absurda.

A votação foi cercada por controvérsias, com a oposição argumentando que os terrenos abrangidos pela proposta eram de proteção à biodiversidade, e ocorre no momento em que a Câmara se articula para votar a liberação dos jogos de azar. Defensores da liberação têm a expectativa de turbinar essa atividade, sobretudo em cassinos ou resorts.

A PEC mantém sob domínio da União áreas usadas pelo serviço público federal, unidades ambientais federais e terrenos não ocupados. No entanto, autoriza transferir a estados e municípios áreas usadas pelos serviços públicos estadual e municipal.

Proprietários e ocupantes de imóveis inscritos junto ao órgão de gestão do patrimônio da União ou não inscritos, mas que tenham ocupado o local pelo menos cinco anos antes da publicação da emenda constitucional, também são abrangidos pelo texto.

Estados como Santa Catarina, Maranhão e Pernambuco, assim como outros localizados no litoral, tinham interesse na aprovação do texto, visto como oportunidade de resolver conflitos judiciais.

A PEC prevê que a União fará a cessão onerosa dessas áreas, ou seja, seus ocupantes serão obrigados a comprar o terreno. A medida é considerada de alto risco por diversas razões.

Em primeiro lugar, o texto dá um prazo de até dois anos para que a compra seja concretizada pelos ocupantes, à exceção de áreas ocupadas com função social -vilas de pescadores, comunidades quilombolas, por exemplo-, estados, municípios e concessionárias, casos em que a transferência seria gratuita.

Além de impor custos aos ocupantes privados das áreas, a PEC não traz nenhuma previsão para o caso de o pagamento não ser efetivado, o que pode gerar insegurança jurídica.

Há quem veja risco de a União perder receitas, pois os atuais ocupantes poderão alegar que o governo perdeu o prazo para efetuar a cobrança. Neste caso, os técnicos afirmam que seria a "maior transferência de renda da história", uma vez que o valor das áreas envolvidas pode chegar a R$ 1 trilhão. Os beneficiários tendem a ser pessoas de alta renda, que ocupam terrenos à beira-mar.

Em segundo lugar, os técnicos alertam que, ao permitir a cessão de áreas a ocupantes não inscritos no cadastro da União, a PEC abre brecha para a prática de grilagem -quando há ocupação irregular de terras públicas por meio de uso de escrituras falsas. O risco é surgirem grandes quantidades de escrituras reivindicando direitos sobre terrenos hoje da União.

Segundo fontes do governo, a proposta contraria diversos ministérios. A pasta da Infraestrutura, por exemplo, apontou uma série de riscos para o setor portuário, que pode se ver obrigado a comprar as áreas que ocupam hoje, com custos que podem comprometer seu fluxo de caixa.

O terminal da mineradora Vale no Porto de Tubarão, por exemplo, está instalado em mais de 1 milhão de metros quadrados de terrenos de marinha. Já o terminal da Arcelor Mittal, vizinho ao da Vale, tem 890 mil metros quadrados em terrenos de marinha.

Pela PEC, as companhias teriam que pagar cifras bilionárias à União para executar a compra forçada, o que poderia comprometer o fluxo de caixa das empresas, ou ainda gerar disputa por desapropriação em caso de não pagamento.

Além disso, a União corre o risco de perder áreas portuárias para estados e municípios após o fim dos contratos de delegação do serviço a um operador.

A PEC também proíbe a cobrança de foro e taxa de ocupação das áreas, assim como do laudêmio -5% do imóvel- sobre as transferências de domínio.

Antes da votação, o presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL), havia qualificado o fim da cobrança como um avanço. "Porque não tem lógica de você permanecer com cobranças de laudêmio. E não é só o caso de Petrópolis. É do Brasil todo", disse.

"Fora de uma realidade, com uma subjetividade absurda. Então, a União terá ganhos com isso e a população também. A desburocratização ajuda no aspecto da aprovação dessa PEC."

Para o deputado Rodrigo Agostinho (PSB-SP), o texto abre brechas para a privatização de praias. "As áreas litorâneas (praias, restingas, manguezais, ilhas,...) e algumas áreas em rios navegáveis são consideradas terrenos da Marinha, ou seja da União. Em muitas cidades essas áreas foram ocupadas e o governo cobra tributos", disse.

"O problema é que muitas dessas áreas são muito sensíveis ambientalmente. São áreas sujeitas a inundações ou que possuem biodiversidade. Agora, por exemplo, uma praia poderá ser privada, algo que não existe no Brasil."