BRASÍLIA, DF (FOLHAPRESS) - Com conversas que se arrastam desde 2019, os governos de Brasil e China não conseguiram renovar a tempo os dois principais documentos que definem as diretrizes e as prioridades das relações bilaterais. Venceram em dezembro tanto o Plano Decenal de Cooperação Brasil-China como o Plano de Ação Conjunta --com validade de cinco anos-- assinados entre os dois países em 2012 e 2014, respectivamente.

Enquanto o Plano Decenal traz princípios comuns que devem reger a parceria, o documento quinquenal é mais detalhado. Ele reúne metas e indica interlocutores em diversas áreas, como agricultura, ciência e tecnologia, cooperação financeira e educação, entre outros. Ambos os documentos servem de bússola para orientar a relação bilateral a longo prazo.

As metas no Plano de Ação Conjunta que acaba de vencer incluem estimular visitas de autoridades e trabalhar em conjunto certos temas em organismos internacionais. O texto define ainda o objetivo de estimular a participação de empresas chinesas em licitações no Brasil e garantir a troca de informações de medidas fitossanitárias para evitar a retenção desnecessária de mercadorias nos portos.

Embora o fim da validade dos textos não tenha maiores efeitos práticos, o fracasso da diplomacia em atualizá-los até o fim do ano passado é um reflexo simbólico do esfriamento das relações sino-brasileiras em boa parte do mandato do presidente Jair Bolsonaro (PL).

De acordo com interlocutores, diferentes fatores contribuíram para que os dois governos chegassem ao fim de 2021 sem um consenso sobre o que deveria constar nos novos documentos: a pandemia da Covid-19 e a realização --por exigência chinesa-- de praticamente todas as reuniões em ambiente virtual; o imenso aparato burocrático de Pequim, que exige múltiplas aprovações em diferentes instâncias na negociação de documentos; e os sucessivos atritos que marcaram as relações bilaterais até a demissão do ex-ministro Ernesto Araújo (Relações Exteriores).

As consultas internas e a troca de propostas coincidiram com alguns dos momentos mais tensos do relacionamento do Brasil com seu maior parceiro comercial.

No início de 2020, por exemplo, o deputado federal Eduardo Bolsonaro (PSL-SP), filho do presidente, publicou um texto comparando a Covid-19 ao acidente nuclear de Tchernóbil (1986), na antiga União Soviética. Na publicação, o parlamentar ainda afirmou que o regime chinês tinha responsabilidade pela disseminação da doença.

A manifestação gerou reação do embaixador da China em Brasília, Yang Wanming, que a classificou de "insulto maléfico" e acusou Eduardo de ter contraído um "vírus mental". O episódio não foi isolado.

Em diferentes ocasiões, o próprio presidente Bolsonaro endossou a tese de que o coronavírus teria sido criado num laboratório chinês e fustigou o país asiático para criticar o imunizante Coronavac --trunfo político de um de seus adversários, o governador de SP, João Doria (PSDB).

Ernesto Araújo, por sua vez, chegou a pedir a Pequim a substituição do embaixador chinês no Brasil. Ele foi ignorado. De acordo com pessoas que acompanham o tema, o clima de conflagração que só passou a ser revertido com a chegada do novo chanceler, Carlos França, respingou no calendário de negociações dos dois planos no âmbito da Cosban (Comissão Sino-Brasileira de Alto Nível de Concertação e Cooperação).

Interlocutores destacam que, nos pontos mais baixos da relação, houve prejuízos sobre o fluxo de informação que trafega entre Brasília e Pequim, com reflexos também nas conversas que ocorriam na Cosban. O órgão é o principal mecanismo de coordenação institucional da relação Brasil-China, liderado pelo vice-presidente Hamilton Mourão (PRTB) e pelo número 2 do regime chinês, Wang Qishan.

Os governos do Brasil e da China continuam discutindo os documentos, de qualquer forma. Também está sobre a mesa uma tentativa de reformulação da estrutura da própria Cosban, mas o tema enfrenta resistência dos chineses. O objetivo é tentar fazer as negociações avançarem para que o impasse não afete a realização, ainda no primeiro semestre, de uma reunião planejada entre os vices.

O encontro virtual ainda não está agendado, mas interlocutores temem que sua não realização venha a representar mais um sinal negativo nas relações sino-brasileiras.

A janela de oportunidade para tentar salvar a reunião da Cosban é curta. No Brasil, as eleições presidenciais devem mobilizar o calendário de autoridades a partir do segundo semestre; enquanto isso, os chineses já estão em fase de preparativos do 20º Congresso Nacional do Partido Comunista Chinês, marcado para o mês de outubro.

Presidente do CEBC (Conselho Empresarial Brasil-China), o diplomata Luiz Augusto de Castro Neves explica que o Plano Decenal e o Plano de Ação Conjunta "visam a uma ordem de prioridades" na relação bilateral e, essencialmente, "balizam o governo e servem de orientação para a iniciativa privada".

Ex-embaixador do Brasil na China, ele credita o atraso exclusivamente aos efeitos da pandemia e não vê um possível componente político na não renovação dos planos.

"Os chineses entendem muito bem que nas relações há um discurso e uma realidade. Em momento algum o comércio Brasil-China foi prejudicado por questões não comerciais", afirmou, ao ser questionado sobre o histórico de ataques do presidente Bolsonaro e seus aliados contra Pequim.

Procurado pela Folha, o Itamaraty informou que um dos resultados da última reunião de alto nível da Cosban foi uma determinação para o início de "discussões para aprimorar a estrutura" do mecanismo e "preparar novo documento para orientar as relações bilaterais". A reunião ocorreu em maio de 2019, em Pequim, e teve a participação de Mourão e Wang Qishan.

O Brasil enviou a primeira proposta de reestruturação em dezembro de 2020, ainda segundo a pasta. A última contraproposta chinesa foi recebida em janeiro de 2022.

O ministério destacou também que as negociações dos dois planos envolvem temas que vão de "política, economia e comércio" a "infraestrutura, agricultura, cultura, tecnologias da informação e cooperação espacial", entre outros.

"Em processo dessa envergadura, é natural que o prazo de avaliação pelos órgãos técnicos de parte a parte seja longo. Nas circunstâncias atuais de pandemia, o processo tem-se alongado ainda mais, sobretudo em decorrência da impossibilidade de encontros presenciais", justificou a chancelaria em nota.

"Em temas que por vezes implicam sensibilidades internas, reuniões face a face permitiriam maior celeridade no intercâmbio de percepções. O processo negociador segue em 2022, por meio de reuniões virtuais, e o Brasil espera concluí-lo com a máxima brevidade." O Itamaraty também afirmou que não compartilharia detalhes das negociações em curso.