SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) - Com a tela dividida ao meio, Guilherme Boulos (PSOL) franze a testa e balança vigorosamente a cabeça em sinal negativo, inconformado com a fala do então tucano Geraldo Alckmin sobre saúde e educação estarem fora do teto de gastos.

A cena ocorreu no debate promovido pela TV Record em setembro de 2018 entre os candidatos à Presidência, em que ambos concorriam.

Em breve, Boulos deverá ter que balançar a cabeça positivamente para o ex-tucano, pois ambos estarão juntos na aliança em torno da candidatura presidencial de Luiz Inácio Lula da Silva (PT).

A animosidade passada entre os dois novos companheiros de palanque apresenta uma série de desafios para a chapa lulista.

Embora o discurso entre os componentes da união seja de otimismo, com a possibilidade de uma convivência produtiva, o histórico de declarações agressivas não é fácil de ser superado.

O gesto de inconformismo de Boulos com a cabeça nem foi o que de pior se passou entre os dois na eleição de quatro anos atrás.

Em outro debate da campanha, promovido por Folha de S.Paulo, UOL e SBT, Boulos listou, numa mesma pergunta, diversas acusações e suspeitas que pesam contra Alckmin.

"Apesar de alguns te chamarem assim, você não é nenhum santo", disse. A referência era ao codinome "Santo" de Alckmin nas planilhas de propina da empreiteira Odebrecht, reveladas pela Lava Jato.

Em seguida, Boulos mencionou acusações de desvios na merenda escolar na rede pública e de corrupção em obras de trens metropolitanos, do Rodoanel e do metrô, todas negadas por Alckmin.

Arrematou com uma comparação que nitidamente irritou o interlocutor. "O sentimento do povo nas ruas, Alckmin, é de que você é o Sergio Cabral que não está preso", disse, em referência ao ex-governador do Rio de Janeiro.

A resposta veio no mesmo tom. "Olha, esse é o nível do candidato a presidente da República. Eu tenho 40 anos de vida pública. Sempre trabalhei, não fui desocupado, não invadi propriedade", disse Alckmin, lembrando o papel de Boulos como coordenador do MTST (Movimento dos Trabalhadores Sem Teto).

Em outros encontros, também ocorreram farpas. No último antes do primeiro turno, promovido pela Rede Globo, Boulos escolheu em três ocasiões direcionar sua pergunta para Alckmin.

Um dos temas mais explorados pelo psolista era o apoio dado pelo PSDB às reformas promovidas pelo governo Michel Temer (MDB), como o teto de gastos e a flexibilização da legislação trabalhista.

"Eu quero saber, Alckmin, por que vocês sempre cortam nos direitos e nunca nos privilégios da sua turma?", perguntou.

O então tucano respondeu que Boulos, como o PT, "defendem corporativismo". "Nós, não. A reforma trabalhista foi necessária", completou Alckmin.

Ele agora deverá ser vice na chapa de Lula, que tem como uma principais das bandeiras reverter as mudanças na lei trabalhista.

Procurados pela reportagem, Alckmin e Boulos não quiseram comentar as rusgas passadas. O ex-governador de São Paulo deve se filiar ao PSB ainda este mês, para compor a chapa encabeçada pelo ex-presidente. O PSOL já indicou que também estará na coligação e deve formalizar a decisão em breve.

Representantes dos dois partidos deverão integrar a coordenação de campanha e de programa de governo de Lula, mesmo que Alckmin e Boulos não participem pessoalmente.

É inevitável, no entanto, que ambos estejam juntos em eventos de campanha. Aposta-se ainda que os antigos desafetos façam parte do primeiro escalão de um eventual governo de Lula.

Segundo um membro da cúpula do PSOL ouvido em caráter reservado, é impossível negar o constrangimento com a situação, mas não há muito que possa ser feito além de conviver com ela.

No que dependesse do partido esquerdista, Lula optaria por outro vice, mas o discurso deve ser de que é preciso engolir a seco a convivência com o ex-tucano em nome de um objetivo maior, o de derrotar o presidente Jair Bolsonaro (PL).

"O PSOL se manifestou contra essa indicação, que não agrega nada ao Lula. O Alckmin é conservador, tem histórico de repressão a movimentos sociais. Mas essa decisão não está sob a nossa alçada. A hegemonia na aliança é do PT", diz o deputado federal Ivan Valente (PSOL-SP).

Segundo ele, a polarização com Bolsonaro vai acabar diluindo a questão. Uma diferença importante, afirma o parlamentar, está no comportamento pessoal de Alckmin com relação a Bolsonaro.

"Uma convivência civilizada com o Alckmin pode acontecer. Eu sempre o cumprimentei, a gente pode conversar. Já o Bolsonaro é inconvivível", afirma Valente.

Para o secretário-geral do PT, deputado federal Paulo Teixeira (SP), estabelecer um modo de convivência entre Boulos e Alckmin na chapa é possível. "Difícil é superar os problemas do [Vladimir] Putin com o [Joe] Biden. O resto dá para conversar", afirma.

Segundo ele, ambos são políticos experientes, que entendem a necessidade de união no atual momento do país. "Todos têm maturidade para ver a gravidade do que está acontecendo com o Brasil, virar a página. Derrotar Bolsonaro é o que unifica todo mundo", diz Teixeira.

O próprio Lula já teve desavenças sérias com Alckmin no passado. Na eleição de 2006, por exemplo, os dois disputaram o segundo turno, numa campanha acirrada.

Na ocasião, o então tucano disse que o petista mentia sobre temas como a corrupção em seu governo. Foi chamado de leviano pelo então presidente em troca.

No caso de ambos, no entanto, a avaliação é de que a troca de farpas já está superada, após diversos contatos amistosos entre os dois nos últimos meses. Além disso, Lula e Alckmin tiveram relacionamento cortês quando estavam na Presidência e no Governo de São Paulo, respectivamente.

Já o histórico do ex-tucano com Boulos é bem mais atribulado, em razão de diversos episódios envolvendo ações do MTST. Um dos mais tensos ocorreu na desocupação pela Polícia Militar na comunidade do Pinheirinho, em São José dos Campos (SP), há dez anos.