RIO DE JANEIRO, RJ (FOLHAPRESS) - Quando as primeiras promessas de despoluição da baía de Guanabara, no Rio de Janeiro, engatinhavam, cerca de quatro centenas de botos-cinza ainda circulavam pelas águas poluídas.

Os manguezais, que cobriam toda a costa antes da explosão do crescimento urbano no entorno, resumiam-se a cerca de 60 quilômetros quadrados --menos de um quarto do que tinham sido um dia.

Depois de 40 anos de promessas de limpeza fracassadas, os dois símbolos do que já foi uma baía despoluída tiveram destinos distintos.

Os botos atualmente não passam de 30, caminhando para o desaparecimento nas próximas décadas. Os manguezais, por sua vez, já lotaram sua área protegida e se expandem para outras regiões.

A diferença reflete a diversidade da qualidade ambiental dos 328 quilômetros quadrados do espelho d'água da baía, cuja imagem é associada, por completo, ao esgoto. Mostra também o impacto da poluição e a capacidade da natureza se recuperar.

A principal área de manguezais remanescentes fica na APA (área de proteção ambiental) de Guapimirim, ao fundo da baía. Criada em 1984, ela garantiu a sobrevivência do ecossistema ameaçado pela extração de madeira para queima nos fornos de olarias que funcionavam no entorno da baía.

Nos 37 anos de preservação, toda a extensão da área se regenerou naturalmente ou foi reflorestada. Atualmente, falta espaço para replantio.

"Só parar com a ação de retirada do mangue foi suficiente para começar a recuperação. Ficaram algumas feridas onde, a partir de 2008, foi feita uma intervenção direta para recuperar", afirmou Maurício Muniz, analista ambiental da APA há 12 anos.

Os manguezais são pontos importantes para as espécies marinhas. Cerca de três quartos delas dependem desse ecossistema em alguma fase da vida.

Censo feito entre os anos de 2008 e 2015 identificou na APA 167 espécies de peixes, 34 de répteis e 32 de mamíferos na área sob proteção no fundo da baía.

A preservação do local é resultado de uma combinação da baixa ocupação urbana no entorno dos rios que deságuam na APA e da vazão natural desses corpos hídricos. O volume de água dos cinco que chegam à área representa cerca de 60% do total de água doce que desemboca na baía por 55 rios.

Além disso, a unidade de conservação está próxima do fim do canal central da baía, via pela qual ocorre intensa troca de água com o mar. Cerca de metade da água da Guanabara é trocada a cada 12 dias.

"Esses dois fatores explicam por que temos mais de 50 anos de poluição intensa nesse ecossistema e ainda assim seja possível ver diversidade biológica", afirmou Muniz.

A melhor qualidade da água no entorno da APA atraiu os cerca de 30 botos-cinza que ainda vivem na baía de Guanabara.

Segundo José Laílson Brito Junior, coordenador do Laboratório Maqua (Mamíferos Aquáticos) da Faculdade de Oceanografia da Uerj, os cetáceos aos poucos estão deixando de circular por toda a baía, como faziam, para se concentrar por mais tempo próximos à área protegida.

"Eles sempre circulavam por toda a baía, saindo do fundo e indo até a entrada. Atualmente, ficam mais tempo na área da APA. É uma mudança de comportamento", afirmou ele.

A presença dos botos na baía era tão grande que eles integram desde 1896 o brasão oficial da cidade do Rio de Janeiro. Na década de 1980, um estudo indicou que ainda existiam 400 deles na baía.

Lailson e dois colegas decidiram recontar os cetáceos quando as promessas de despoluição recomeçaram. Em 1995, um ano após o lançamento do Programa de Despoluição da Baía de Guanabara, encontraram cerca de 100. Atualmente, há apenas 26 identificados e estima-se a presença de cerca de 30.

"É o que a gente chama de população vestigial. Nesse ritmo, é provável que em 2050 não tenhamos mais botos", disse o pesquisador.

O sumiço dos botos não representa apenas a perda de um símbolo histórico da cidade, afirma o coordenador do Maqua.

"Os botos são sentinelas da baía. Como eles têm residência fixa, eles se alimentam dos animais que estão ali e são um bom indicador de saúde ambiental. E estão avisando para a gente que o negócio não está bom", diz Lailson.

Um dos piores indicadores de contaminação é a presença de ascarel, produto usado em transformadores cuja produção e uso são controlados desde a década de 1980, mas persistentes no ambiente. Ele reduz a fertilidade e praticamente condena à morte o primeiro filhote das fêmeas.

"Quando elas têm os filhotes, passam pela amamentação quase 80% da carga contaminante. A partir do segundo é que há uma carga menor, mas ainda presente", conta Lailson.

Símbolo de uma baía que não existe mais, o boto foi esquecido na disputa para ser uma das mascotes das Olimpíadas de 2016, realizada no Rio de Janeiro. A promessa de tratar 80% do esgoto lançado na baía de Guanabara até os Jogos também ficou pelo caminho.

O questionamento internacional sobre as condições da baía para sediar as disputas de vela nos Jogos levou o biólogo marinho Ricardo Gomes a se dedicar a mostrar que, apesar dos problemas, a baía seguia viva.

"Em 2015, começaram aquelas reportagens dizendo que a baía de Guanabara estava morta, que seria uma vergonha realizarmos os Jogos Olímpicos ali. Pensei: 'Essa mensagem dela morta não está surtindo efeito'. Decretar a morte da baía de Guanabara é transformar ela num lixão", disse ele.

Gomes filmou cerca de 70 espécies marinhas tanto em pontos com qualidade de água razoáveis, como em locais mais poluídos, como a Praça 15.

"Logo no primeiro mergulho vi uma diversidade incrível. O que me surpreendeu mais foram as espécies de raias. Apesar de todos os problemas, a Guanabara é a quinta baía do mundo com maior biodiversidade de elasmobrânquios por conta das sete espécies de raias identificadas pela UFRJ", afirma ele.

A vida na baía permaneceu possível graças à troca intensa de água com o mar, principalmente pelo canal central por onde passam as grandes embarcações.

A área mais degradada fica no entorno da Ilha do Governador, onde estão os rios mais poluídos da bacia hidrográfica. A melhor fica no canal central, nas áreas próximas ao mar e na APA de Guapimirim. Ainda assim, elas convivem com problemas.

O professor de engenharia oceânica Paulo Rosman, da Coppe/UFRJ, afirma que, cumpridas as novas promessas de despoluição, "em um ano se vê uma melhoria espetacular na baía".

"Por incrível que pareça, a baía tem muita vida. É muito rica biologicamente. Em um ano [sem esgoto] muda de figura completamente", afirma ele.

José Lailson, do Maqua/Uerj, é mais reticente.

"Se algum dia a carga orgânica reduzir, é provável que a gente tenha uma interação da água nova com os sedimentos contaminados, o que pode adiar a despoluição. Seria um longo caminho. A gente não usa DDT [tipo de pesticida] há um tempão e o sinal [dele nos botos] não baixa. Ele é muito persistente no ambiente", afirma o pesquisador.

Para Maurício Muniz, da APA de Guapimirim, a unidade de conservação pode vir a ser uma "Arca de Noé" para o repovoamento das espécies da baía. Ele afirma que não é necessário esperar a conclusão dos projetos de saneamento para o início da melhoria da condição ambiental.

"Os processos de despoluição de baías urbanas no mundo mostram que, quando sai de níveis muito baixos para cerca de 50%, um limiar que ajude a autodepuração do ambiente, o salto de qualidade já é enorme", afirma.

"A melhoria da condição ambiental da baía está mais próxima do que a gente acredita. O problema é que não foi feito nada. Ficamos em níveis medievais de tratamento de esgoto por décadas", diz Muniz.