SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) - Longe de mim querer defender bilionários -nem tenho amigos que são-, mas o livro de Peter Goodman, ao culpá-los por todos os males do mundo, erra a mão. E o alvo.

Em "Davos Man: how the billionaires devoured the world" (Homens de Davos: como os bilionários devoraram o mundo), Goodman, um experiente repórter de economia do New York Times, argumenta que o aumento da desigualdade nas últimas décadas, o retrocesso do bem-estar social e a ascensão do populismo de direita são consequência da ganância dos mais ricos, que fizeram fortuna monopolizando os ganhos da globalização e pagando cada vez menos impostos e, desse modo, empobreceram o Estado e toda a sociedade.

Nessa lógica, até as milhões de mortes pela Covid são culpa do "homo Davos", que teria tirado dos governos a capacidade de prover sistemas de saúde capazes de lidar com a pandemia, defende o autor.

A análise é sedutora -além de indignada e bem escrita, combinação difícil de alcançar-- porque muito do que aponta está, de fato, correto. O topo dos rankings dos mais ricos do mundo nunca teve tanto dinheiro quanto hoje, especialmente após a pandemia, quando a disparada das ações fez a fortuna de seus detentores multiplicar-se.

Ao mesmo tempo, seja por meio de cortes de impostos, como os implementados pelo ex-presidente americano Donald Trump, contabilidade criativa ou evasão fiscal pura e simples, esses homens (não há mulheres entre os homo Davos) nunca pagaram tão pouco em impostos, proporcionalmente.

Para ilustrar, Goodman cita uma investigação da agência ProPublica, segundo a qual o magnata/astronauta Jeff Bezos, fundador da Amazon, conseguiu pagar zero de impostos federais em 2007 e 2011. Sempre na cola, Elon Musk, da Tesla, reproduziu o feito em 2018.

Embora a escala seja inédita, o autor reconhece que ricos fugindo de impostos não é exatamente uma novidade na história mundial. O que parece indignar mais Goodman, e o que o autor defende ser o traço distintivo do Davos Man, é o que ele chama de "Mentira Cósmica": a ideia atraente, mas equivocada, de que cortar impostos e desregular mercados vai enriquecer também as massas, beneficiadas pela maior capacidade de investimentos e inovação que os mais ricos teriam com dinheiro extra em mãos.

Veterano do Fórum Econômico Mundial, o jornalista usa o encontro como símbolo máximo dessa manobra retórica. Enquanto o evento se divulga como um grande encontro entre os maiores empresários e pensadores do planeta para discutir soluções para os problemas da humanidade na construção do chamado "stakeholder capitalism" (um capitalismo benéfico para todos, do chão de fábrica ao CEO), na prática ele funciona como um espaço de networking entre bilionários e autoridades governamentais em defesa do bom e velho "shareholder capitalism" -aquele que se importa mesmo com os acionistas.

Para mostrar o descompasso entre discurso e prática, Goodman escolhe seis homo Davos: Bezos, da Amazon; Stephen Schwarzman, CEO da firma de private equity Blackstone; Marc Benioff, CEO da empresa de software Salesforce; Jamie Dimon, presidente do banco JP Morgan, e Larry Fink, CEO da gestora global BlackRock.

"Minha missão é ajudar você a entender os homens da Davos como uma espécie. Ele é uma criatura rara e extraordinária -um predador que ataca sem constrangimento, perpetuamente buscando expandir seu território e capturar o sustento dos outros, enquanto protege a si mesmo de represália posando como um amigo simbiótico de todos", escreve o autor.

Esse espírito algo entre o catalogador e o caricaturista aparece ao longo do livro nas anedotas sobre as personalidades dos espécimes selecionados -o luxo, a falta de tato pela completa desconexão com a vida das massas-, sempre saborosas ao leitor com menos de dez dígitos em sua conta bancária, mas que dizem muito pouco em termos de interpretação das engrenagens do capital contemporâneo.

A maior deficiência do livro é justamente essa: encarar problemas econômicos e sociais estruturais como subproduto da agência individual dos bilionários -e nem meia dúzia deles.

Goodman parece genuinamente acreditar que os anos dourados do Estado de bem-estar social após a Segunda Guerra Mundial acabaram pelas maquinações vilanescas do homo Davos. Em certo momento, o autor chega ao extremo de escrever que o capitalismo atual, capturado pelos bilionários, "nem é mais capitalismo".

Ao tomar os anos 1950 e 1960 como padrão do capitalismo -em vez de uma exceção possível em um contexto muito específico, o da Guerra Fria-, Goodman mostra uma visão quase ingênua da história.

Um dos momentos mais desconcertantes é a indignação de Goodman por Bezos ter se tornado tão rico valendo-se das sofisticadas práticas de vigilância da Amazon, que minimizam o tempo ocioso e maximizam o de produção, pagando o menos possível somente pelo efetivamente trabalhado.

Não precisa ser marxista para saber que isso é o capitalismo funcionando muito bem, obrigada.

O erro de diagnóstico, culpando má-fé individual no lugar de localizar as estruturas que permitem essa dinâmica econômica, leva à proposição de soluções tão superficiais quanto a análise do problema.

Para o jornalista, basta fazer os mais ricos pagarem mais impostos. Na defesa desse argumento, ele cita as propostas de taxação de fortunas dos democratas Bernie Sanders e Elizabeth Warren, que resultariam em trilhões a mais aos cofres americanos capazes de prover um sistema público de saúde, por exemplo.

Sem dúvida, quanto mais redistribuição de renda, melhor. Goodman está certo em defender que os mais ricos paguem proporcionalmente mais impostos do que os mais pobres -é difícil argumentar contra isso.

Mas isso não resolve todas as mazelas sociais de um sistema cujo mote é o lucro. Se Bezos ou Benioff não existissem, certamente existiriam outros no lugar deles, fazendo o mesmo que eles fazem. A caricatura dos bilionários feita por Goodman obscurece as engrenagens que permitem que eles existam. Quem seleciona o homo Davos é o habitat, afinal.

DAVOS MAN: HOW THE BILLIONAIRES DEVOURED THE WORLD

Preço R$ 115,30 (ebook)

Autor Peter Goodman

Editora Custom House

Avaliação Regular